É
só um pequeno pedaço de plástico. Não tem uma cor bonita, minha foto ficou
esquisita e meu nome veio escrito errado. Mas receber hoje o crachá da Fiocruz
me deu uma alegria tremenda. Tanto que já estou em casa faz tempo, e ainda não
o tirei do pescoço. Antes, andei de ônibus, passeei pela rua e entrei numa
loja, tudo de crachá pendurado. Fingindo ser uma coisa bem natural, do tipo:
ah, esqueci de tirar. O fato de ainda estar usando este objeto enquanto escrevo
é meio ritualístico, como se eu dissesse: pela força do crachá, daí-me
inspiração! Viagem, eu sei. Mas eu estava com saudade disso, de viajar. De
ficar horas imersa numa sensação de que as coisas estão mudando, e de que a
vida é incrível por isso! Porque nos despenteia e não permite que a gente se
acostume.
Vim
para o Rio com a vontade clara de mudar de vida. Eu queria isso, mas não sabia
por onde começar. Aliás, tinha começado por caminhos inférteis, mudando sempre
a cor e o corte dos cabelos, sem permitir nunca que minha cabeça deixasse de
apresentar uma novidade. Pelo menos ela. Mas não bastava. Eu queria mais.
Desejava ser jogada de novo em algum lugar onde eu soubesse responder à
pergunta: e agora, por que eu estou chorando? Hoje eu sei: estou chorando por
saudade. Da minha mãe, do meu pai, da minha casa de portas azuis (azul
colonial, diga-se). Da minha cama, da sopa antes de dormir. Dos meus amigos, do
meu carro, de ter sempre companhia. São coisas tão concretas, que eu quase
posso tocá-las, apenas ao lembrar delas. Mas é que essas coisas todas me
deixavam tão saciada que eu não tinha um título para o vazio que sempre pinta,
que de vez em quando pinta. Vinha do trabalho? Vinha do namoro à distância? Vinha
de ter parado de estudar e de ter tantas vezes ligado o piloto automático da
acomodação? Vinha de onde?
Vim
para o Rio porque suspeito que meu lugar-comum, aquele onde de fato me sinto em
casa no sentido existencial do termo, é a mudança. Quando tudo está se
desconstruindo é que eu entendo que estou viva, e sinto que preciso ter braços
e pernas fortes, que preciso ter coragem. De ser só. De não ser mais a menina
dos abraços matinais em quase todos os companheiros de trabalho. A que sempre
conseguia escrever os cartões de aniversário, e a que diuturnamente estava
disposta a dar carona, inclusive para caminhos opostos. De não ser mais a filha
quase mãe, que sempre resolvia tudo e que dormia contente no berço da gratidão
alheia. E aqui, quem eu serei? A estudiosa? A conciliadora? A comilona? A moça
do Catete bordada de flor? Terei amigos? Já os tenho? Beberei com eles a mesma
cerveja de sempre, ou descobrirei outros sabores? Invocando Narcisa, são tantas
possibilidades! Darei conta da proposta? Claro que sim, todos dirão. Sim, penso
eu. Sairei viva e confesso: quem serei já me desperta curiosidade.
Vim
para o Rio porque queria estudar de novo, olhar minha vida profissional sob
outra perspectiva. Queria entender que comunicação é essa que rege a minha
conduta, e que me fez ter uma causa na vida. Que é razão de minha angústia e
também de meu prazer. Mas não tenho plano b. E se está certo o professor que um
dia disse que todo aquele que não tem plano b, não tem plano algum, danou-se.
Minha lua é a curiosidade, e o verbo que me rege é ‘aprender’. Estarei atenta
aos menores sinais: os oficiais e os subliminares também. Ao que dizem os
professores e ao que cochicham os colegas. Às cores que tingem a cidade e à sua
velocidade. Ao que está impresso nas dezenas de livros e à ponte que
construirei entre eles e aquilo que eu já era antes de chegar aqui. Às poesias
pintadas nos muros da cidade e às ausências delas no metrô em horário de rush.
Conhecerei melhor o sabor da minha própria comida e tentarei me reconhecer
quando esbarrar no espelho e perceber que as olheiras cresceram ainda mais.
Ouvirei as histórias dos cariocas e tentarei decodificá-las exageradas ou não.
E se tudo isso me engolir, descansarei no silêncio da vida sem companhia que
escolhi ter.
Este
é o início da jornada da menina, da moleca, da preta, da piá. Ela está
assustada. Mas está muito feliz.
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