terça-feira, 22 de outubro de 2013

O último portfólio



Conheci dia desses uma frase ótima: isso que chamam de mestrado é, na verdade, uma máquina de fazer doido. Desconheço o autor, mas como ele tem razão! Minha loucura, que já saía de todos os buracos da minha cabeça, agora pressiona o corpo inteiro. Tudo dói. As costas, as imediações do pescoço, os olhos fundos e pesados. O pulso fisgando a cada clique no botão direito do mouse. Agora sim fiquei sem muito tempo para abstrações. Para frequentar as praças e os bares da cidade. Sequer para ir às manifestações de rua. Justo na hora que ficou bom...

Os dias chegam, vão, e milagrosamente ainda lembro-me de pagar as contas e de manter abastecida a geladeira. Viver agora é cumprir um cronograma pregado na parede em frente ao computador, cercado de palavras-chaves escritas em papel neon. Não há dia que não voe. E só Nina Simone me entende, enquanto faço download de matéria de jornal, cantando baixinho, noite adentro, no limite de dormir sentada e saltar para a cama. Até vir o sol e começar tudo outra vez.

Resolvi entrar na academia porque já não dormia direito, mesmo esgotada mentalmente. Agora, depois de uma aula de jump e uma ducha morna, difícil é levantar, tão perfeito e profundo é o sono! Há também alguma vaidade nisso, agora absolutamente assumida. Depois dos 30 comecei a pensar que já tendo me disposto a mudar de cidade, a fazer mestrado e a viver longe de casa, por que não ficar mais bonita também? Fato é que a combinação ‘mente sã, corpo são’ agora é uma tradução literal nas imediações do catete, sem técnicas mágicas. Dura é a vida, menina, já dizia minha avó. Estudar, fazer dieta, malhar e dormir bem. Tá, e tomar um chopinho um domingo ou outro, porque se não teria nascido outra pessoa no lugar da Clarisse. E aí seria caso de internação. 

Mesmo não precisando mais, em termos quantitativos, resolvi cursar a disciplina Análise de Discursos, com a professora Inesita. Já disse à ela que agora carrego uma mágoa de caboclo, porque se tal curso tivesse sido ofertado antes, minha cabeça estaria teoricamente muito mais organizada e potente em tudo, inclusive na qualificação. Mas o que não tem remédio, remediado já nasceu. E eu só quero saber o que pode dar certo, seguindo à risca a receita de Torquato. Tem sido muito bonito e muito revelador o aprendizado.

Estive no Intercom, em Manaus, apresentando um trabalho no GP que não tinha ‘Saúde’ no título, mas que foi totalmente dominado pelos representantes da Fiocruz. O professor que apreciou meu trabalho, assim o definiu: está muito bacaninha, e tem o formato bem adequado à proposta do PPGICS. Adequar-se, às vezes, é muito gratificante.

Como se não quisesse focar no dia da defesa da dissertação, empurro para frente o pensamento e esbarro em outro sofrimento: despedir do Rio justo agora que criei minhas preferências? Que aprendi a viver essa cidade tresloucada, sem pecado e sem juízo? Agora que já não me faltam companhias para carnavalizar? Agora que até um relacionamento fixo, porém aberto, apontou no meu caminho, para invernos rígidos ou não? Minha família evita, eu sei, mas sinto que a cada dia que passa, a pergunta me espreita com mais proximidade: chegou a hora de voltar?

O Rio me deu várias coisas e me tirou outras tantas. Não me sinto capaz agora de mensurar, e talvez nem seja mesmo a hora, mas pensar que este é o meu último portfólio com fala, com blog, que aqui começo a me despedir, pelo menos oficialmente, de vários colegas com os quais não consegui tecer maiores intimidades, já me aperta o coração e a garganta. E me aperta mais ainda os outros tantos que me deram muitos risos e acolheram alguns prantos. Nesta vida feita de pessoas, e dos sentidos que as povoam, eu careço de coração mais substancioso, para aguentar seguir sempre em frente, confiando no que vai ficar.

A todos vocês quero fazer a minha homenagem singela. Pois comigo, Cazuza esteve errado. O Cristo abriu os braços e me protegeu. E seja qual for o meu destino, haverá paradeiro para o nosso desejo, dentro ou fora de nós.