quinta-feira, 2 de julho de 2015

Fora da nova ordem pessoal

Estou inquieta. Alguma coisa, dentro ou fora, segue fora da ordem.

Mudei de janela. Neste caso a troca foi injusta. Agora, ao invés de árvores rebeldes e bem-te-vis serelepes, vejo avenida, edifícios e zum-zum-zuns de carros. Não se pode ter tudo, é fato. Mas sigo na tentativa incansável de refazer meu ninho. Deixei o Rio porque já não podia mais com ele. Sendo tão complexa a explicação, resumo sem abrir mão das reticências: o Rio de tornou muito pra mim... Muito complexo, muito inexplicável, muito cansativo. E eu, que vinha fugindo das zonas de conforto, precisei ficar retroativa. Voltar ao ponto em que o calo começou a se fazer notável e me perguntar se havia cura. Mas já era tarde. A leveza das pedaladas nas manhãs de domingo não foi suficiente para manter acesa a chama de amor pelo “purgatório da beleza e do caos”. Eu não queria mais sumir nele. Não queria que meu desejo de uma vida mais simples e mais plena fosse reduzido a ensolarados passeios pelo aterro. Eu queria mais.

Queria morar num lugar onde eu conseguisse fazer amigos substanciosos. Onde eu pudesse lhes apresentar, sem medo de parecer ingênua, como é gostosa a intimidade do lar. Como são bons os dias de “casa aberta em noite de festa”. Queria viver num lugar onde ainda fosse possível ser bem tratado numa loja, num restaurante, num supermercado, sem que as relações de consumo precisassem ser tão grosseiras como são no Rio. Onde o trabalho fosse um espaço também de prazer, e não apenas de obrigação como parece ser, e por isso tão mal executado. Queria morar num lugar onde eu pudesse viver como bolsista, e casada, sem precisar estar numa zona ruim da cidade – sem mobilidade, sem segurança, sem energia alguma no fim do dia. Enfim, queria morar numa cidade que ainda não tivesse aprendido tão fortemente a explorar – uns aos outros, a cidade em si, o tempo e o espaço que nos provêm a custos tão exorbitantes. Uns chamam de desejo de qualidade de vida. Parece uma boa definição. Prefiro chamar de desejo de equilíbrio, fundamental para quem, como eu, fiz um pacto com a matéria subjetiva de que sou feita.

Troquei a casinha minúscula por uma casa normal (mais apta a abrigar as visitas que serão queridas), a cidade medonha por uma de médio porte, os trajetos apreensivos pelo caótico trânsito da cidade, guiados quase sempre por motoristas muito ruins, por algumas horas de ônibus em estradas montanhosas e com vista vasta para o céu. Não sei prever o que me espera neste aqui e agora, neste Juiz de Fora. Sei do frio. Sei do silêncio interno do prédio. Sei das caminhadas ladeiras acima e abaixo.  Sei do sotaque mineiro, ainda que se diga que aqui nem é tão Minas assim. O “cadinho” que é já me afaga. Sei que quero me apaixonar de novo pelo espaço que habito e, quem sabe, avançar o nível no sentimento de pertença que me é tão caro e tão raro. Quero entrar nas Minas amadas pelas bordas, e me embrenhar nelas.

O projeto do doutorado vai, assim, sofrer um deslocamento de campo. Quando ingressei, propus estudar usuários do SUS do Rio de Janeiro. Agora é provável que Juiz de Fora entre na pesquisa. Um estudo comparativo da etnografia informativa/comunicativa? Ou um deslocamento total? A primeira reunião de orientação, que ainda não aconteceu por conta da licença de pós-doutorado de minha orientadora, já tem a tarefa de aparar essas arestas.

Sei que equacionar desejo de pesquisa, com necessidade de pesquisa, com peculiaridades do espaço e tempo em que habitamos, com nossa vontade de potência... ufa... é uma tarefa difícil demais. Mas essa disciplina de portfólio tem me mostrado que estou bem acompanhada. Ela se tornou uma ponte entre mim e os demais colegas de turma, já que não estou com eles na maior parte das disciplinas, haja vista aquelas que consegui dispensar por ser egressa desse programa de pesquisa. É bom ver os questionamentos problematizados não apenas nas apresentações, mas nos fóruns que nos desarmam e desnudam cotidianamente. Cada vez mais raras, essas vivências são as que definitivamente nos marcam.

Por fim, queria registrar que ainda estou sobre este impacto da mudança de cidade, de casa e todo o pacote de referências que vem junto disso. Dia desses fiquei tão atordoada com essas coisas todas que resolvi trabalhar, como saída para ancorar minimamente o pensamento. Comecei o exercício de revisitar minha dissertação para ver o que posso aproveitar em artigos, em apresentações para eventos próximos etc. E foi tão bacana fazer isso! Relembrar a tessitura da obra, resgatar as razões que mobilizaram a escolha das análises, a divisão em capítulos... reconhecer a autora que me tornei através de um processo tão legítimo de construção, composto de todos os erros e acertos próprios. Fiquei orgulhosa. E vi que às vezes, quando tudo parece bagunçado dentro e fora da gente, basta acionar os dispositivos de memória que possam nos lembrar de quem nós somos – de onde viemos e o que nos trouxe até aqui.

A ordem, desordenada que seja, vai achar o seu caminho de volta.