quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O dia D

Nasci competente para rituais. E por isso cuidei de imaginar a mesa posta, cuja oferta lembrasse o que me apetece. Ou de onde vim. Saí catando no Rio castanhas de caju, rapaduras, bolachas secas, quebra-queixo, café. Depois disso arrumei a sala, pensando com cuidado na disposição das cadeiras, e arranjando modo de respirar fundo, focando sempre na real importância da situação. Nem mais, nem menos. ‘É um momento positivo’, todos me diziam. ‘Aproveite bem a oportunidade’, bradavam outros. E a barriga cada vez mais embrulhada, que somada à fraqueza das pernas e aos lapsos da memória, me jogaram cedo numa ansiedade difusa. As células todas histéricas.

Sou competente para rituais, mas nem tanto.

A qualificação foi muitíssimo dolorida. Eu estava lá, com o meu projeto, o que eu levei dias e noites escrevendo, apagando, remendando... mas até ele parecia arisco. Tinha criado forma própria e não me ouvia mais. Ainda quis aparar, no ato do escrutínio, suas arestas. Causar-lhe obediência. Mas eu estava nervosa demais para ter um corte certeiro, direto, objetivo. Então naquele ‘dia D’ o projeto disse de mim muito mais do que eu disse dele. Estávamos sim misturados um no outro, banhados das mesmas angústias, mas agora eu era a escultora, tentando compreender se o que eu havia feito até ali ainda era matéria fluida. Lutando contra o tempo pela parcela que ainda não havia enrijecido pelo tempo de execução e por todas as referências ali embutidas.

Ouvi todas as críticas – anotando e gravando – e depois de assistir o vídeo inteiro duas vezes, concluí que o meu pacote foi completo, para todos os gostos. Quase um combinado de 48 peças! Questionaram praticamente tudo: relevância, objetivos, referencial teórico, métodos. No fim das contas, o projeto era bom, mas se eu girasse as velas do barco e mudasse a direção da busca, ficaria melhor ainda. Só isso. Não houve muito diálogo com a proposta. E aqui eu deixo para sempre registrada a minha mais profunda gratidão e admiração à postura da minha orientadora, que respondeu comigo, em ato, ao que pôde ser respondido, e não deixou que eu me sentisse sozinha um instante sequer. Indefectível.

Cheguei em casa e postei qualquer coisa tão reflexiva no facebook que, dias depois, nosso amigo Marcelo me encontrou na cantina da Fiocruz e, com toda a sua sutileza, falou assim: ‘o que foi? Não aguenta não, minha filha? Então sai da Academia!’ Daí eu pensei: aguentar eu até aguento... Mas tem que ser calada? Armaria, naaaaaammmm...

Confesso que demorei muito tempo para assimilar e categorizar o que me disseram: isso aqui foi sobre o projeto, isso aqui foi sobre eles, isso aqui foi sobre os autores, isso aqui foi sobre os métodos e isso aqui foi sobre a obra. Mas hoje as coisas estão ajustadas. Estou desconstruindo parte do que esculpi, mas uma parte boa vai sim permanecer. E muita água ainda vai passar por baixo dessa ponte, que teimará em permanecer de pé!

Volto agora de 20 dias em casa. Fui reabastecer as energias e esclarecer algumas coisas práticas sobre minha pesquisa. Provavelmente necessitarei estar lá no Ceará mais tempo que o previsto, mas isso ainda se ajusta. Antes de ir, no entanto, tive a imensa oportunidade de assistir a uma aula com Ariano Suassuna, gratuita, no Teatro Municipal. Dentre todas as coisas que ele falou em mais de duas horas de conversa (adendo: ele tem 86 anos!), uma foi especialmente para mim. Disse o escritor: eu não acredito em gente que não sonha, que não tem sonhos, que não faz dos sonhos o seu norte, a sua esperança, a sua bandeira de luta.

Então, Marcelo, eu queria te dizer que eu aguento sim. E que eu vou seguir sonhando. Sem dúvidas sobre a direção das velas. Não mais.