Nasci competente para rituais. E
por isso cuidei de imaginar a mesa posta, cuja oferta lembrasse o que me
apetece. Ou de onde vim. Saí catando no Rio castanhas de caju, rapaduras,
bolachas secas, quebra-queixo, café. Depois disso arrumei a sala, pensando com
cuidado na disposição das cadeiras, e arranjando modo de respirar fundo,
focando sempre na real importância da situação. Nem mais, nem menos. ‘É um
momento positivo’, todos me diziam. ‘Aproveite bem a oportunidade’, bradavam
outros. E a barriga cada vez mais embrulhada, que somada à fraqueza das pernas
e aos lapsos da memória, me jogaram cedo numa ansiedade difusa. As células
todas histéricas.
Sou competente para rituais, mas
nem tanto.
A qualificação foi muitíssimo
dolorida. Eu estava lá, com o meu projeto, o que eu levei dias e noites
escrevendo, apagando, remendando... mas até ele parecia arisco. Tinha criado forma
própria e não me ouvia mais. Ainda quis aparar, no ato do escrutínio, suas
arestas. Causar-lhe obediência. Mas eu estava nervosa demais para ter um corte
certeiro, direto, objetivo. Então naquele ‘dia D’ o projeto disse de mim muito
mais do que eu disse dele. Estávamos sim misturados um no outro, banhados das
mesmas angústias, mas agora eu era a escultora, tentando compreender se o que
eu havia feito até ali ainda era matéria fluida. Lutando contra o tempo pela
parcela que ainda não havia enrijecido pelo tempo de execução e por todas as
referências ali embutidas.
Ouvi todas as críticas – anotando
e gravando – e depois de assistir o vídeo inteiro duas vezes, concluí que o meu
pacote foi completo, para todos os gostos. Quase um combinado de 48 peças! Questionaram
praticamente tudo: relevância, objetivos, referencial teórico, métodos. No fim
das contas, o projeto era bom, mas se eu girasse as velas do barco e mudasse a
direção da busca, ficaria melhor ainda. Só isso. Não houve muito diálogo com a proposta. E aqui eu deixo para sempre
registrada a minha mais profunda gratidão e admiração à postura da minha
orientadora, que respondeu comigo, em ato, ao que pôde ser respondido, e não deixou
que eu me sentisse sozinha um instante sequer. Indefectível.
Cheguei em casa e postei qualquer
coisa tão reflexiva no facebook que, dias depois, nosso amigo Marcelo me
encontrou na cantina da Fiocruz e, com toda a sua sutileza, falou assim: ‘o que
foi? Não aguenta não, minha filha? Então sai da Academia!’ Daí eu pensei:
aguentar eu até aguento... Mas tem que ser calada? Armaria, naaaaaammmm...
Confesso que demorei muito tempo
para assimilar e categorizar o que me disseram: isso aqui foi sobre o projeto,
isso aqui foi sobre eles, isso aqui foi sobre os autores, isso aqui foi sobre
os métodos e isso aqui foi sobre a obra. Mas hoje as coisas estão ajustadas.
Estou desconstruindo parte do que esculpi, mas uma parte boa vai sim
permanecer. E muita água ainda vai passar por baixo dessa ponte, que teimará em
permanecer de pé!
Volto agora de 20 dias em casa.
Fui reabastecer as energias e esclarecer algumas coisas práticas sobre minha
pesquisa. Provavelmente necessitarei estar lá no Ceará mais tempo que o
previsto, mas isso ainda se ajusta. Antes de ir, no entanto, tive a imensa
oportunidade de assistir a uma aula com Ariano Suassuna, gratuita, no Teatro
Municipal. Dentre todas as coisas que ele falou em mais de duas horas de
conversa (adendo: ele tem 86 anos!), uma foi especialmente para mim. Disse o
escritor: eu não acredito em gente que não sonha, que não tem sonhos, que não
faz dos sonhos o seu norte, a sua esperança, a sua bandeira de luta.
Então,
Marcelo, eu queria te dizer que eu aguento sim. E que eu vou seguir sonhando. Sem
dúvidas sobre a direção das velas. Não mais.