quarta-feira, 22 de maio de 2013

O presente desse instante


Ela estava lá, sentada naquela pedra imensa. Magra que era, pura coragem. Sentada nos recifes que moram na beira da praia. De ressaca, o mar e ela. Tudo batia em seu rosto, quando cada onda chegava com força. E ela sorria, tanto quanto engolia água salgada, liberta do peso das esperas. Sorria porque tinha aprendido a viver. E que a vida seria sempre isso, tapa na cara do conforto. 


Não era eu no filme. Era Verônica. Mas podia ser, com minha mania de deitar a cabeça na janela da sala, e ver o Rio invertido. Sem chão. Só nuvem, noite adentro. O que é a noite quando chega? Eterna, arrastada, silente. Podia ser esse eu, que aprendeu a estar aqui. Eu e tudo isso que me ocupa as têmporas. Os receios. As vísceras. “De um lado a vida e do outro a vida” (LIRA, J.P. DE, 2012).

Foi demorada a chegada do estado da aceitação. Antes disso, de deixar a onda bater com força, eu era pura reação. À solidão, à cidade, aos trinta, à Academia, ao desejo de mudar. Foi demorada a dissolução. Entrar no ônibus e perceber que sou parte de tudo isso que compõe o barulho da Babilônia. Perceber que, ao contrário do que eu imaginava, ninguém está sacando que eu não sou daqui. O desapego da condição de estrangeira. As questões eram todas minhas, sempre foram, e eu sofri arrastando as correntes que me exigiam olhar para os lados, ansiando compreensão. Agora foi. Arranquei as caneleiras e estou correndo. A liberdade começa a fazer sentido.

“Eu sei que a felicidade é conselheira da sorte. Hoje eu sei” (LIRA, J.P. DE, 2012).

Recebi ontem a terceira versão do projeto de qualificação. Já ultrapassei as 25 páginas recomendadas em média e ainda tenho tanto a dizer que me desassossega o peso do limite de espaço. No primeiro momento, a orientação de refazer todo o contexto histórico do SUS já escrito, muito linear para quem quer deixar claro que todas as questões foram construídas sobre tensões, discordâncias e hegemonias. Fazer a história sofrer seus cortes. Esgarçar até o limite do possível.

No segundo momento, o jornalismo. Suas especificidades abusadas, suas instâncias viciadas. Representar, ao que será que se destina? (NETO, T.). Por que estudar a mídia e nunca desprezar a importância do “e agora”? Como estar ciente do poder simbólico sem temer sua onipresença e sem afogar a mais genuína esperança? O que diferirá o meu projeto de qualquer outro que se ancore na histeria de decifrar os sentidos? Eu, de novo, e a soma de todas as minhas experiências. O mar batendo em meu rosto. É isso. O que há de especial no meu projeto é que ele é meu, fruto do meu olhar sobre o mundo, que há de servir para alguma coisa proativa que seja.



O que me ajuda a manter a lucidez é nunca esquecer o que me trouxe aqui. Não esquecer que o meu objeto me escolheu, desde criancinha. Não apenas pelo meu pai, que sempre foi única e exclusivamente médico do SUS. Não apenas pela infância no interior do Ceará, bebendo leite de cabra e comendo pão de milho moído a músculos e rancores de meus irmãos. Não apenas pela formação educacional católica, pelo altruísmo impregnado herdado das mãos finas e das saias longas das irmãs salesianas. Não apenas pelo signo de peixes e a condição de estar a par da alteridade e da comunhão. Mas por tudo isso que me põe viva: pai, leite, escola, signo, relações. Porque meu objeto fazia sentido antes de ser objeto. Quando era apenas o desejo de não cruzar os braços para a dor do mundo. Das filas, das esperas, dos silêncios dos que desconhecem a razão de questionar.

Fiquei feliz igual 'pinto no lixo' quando o professor Valdir aceitou compor minha banca de qualificação. Não só porque ele aceitou, mas porque é ele. Uma pessoa generosa. Incrível. Poxa... Pensem num time: Kátia, Valdir e eu? O outro membro que se cuide, porque a energia vai ser massa!!

Na aula inaugural do ICICT este ano, duas falas me chamaram atenção. Primeiro a de Marcelo Rasga Moreira, da Escola Nacional de Saúde Pública: “A ciência não diz a verdade. A ciência dá respostas”. Portanto, ela só existe se existirem as questões e paixões que as motivam (grifo meu). E a minha questão é o ponto de partida, o território de apropriação do que está posto: qual o discurso construído sobre o SUS pela mídia impressa do Ceará e por que? Depois, o contraponto de Caco Barcellos, jornalista convidado: “O jornalismo não diz a verdade e nem dá respostas. Só observa e fornece um olhar sobre a vida e os acontecimentos”. Um olhar diferenciado porque fornido das mais privilegiadas percepções. Era isso mesmo: quando me apaixonei pela saúde pública como grande pauta jornalística, tudo o que produzi eram recortes meus, constituídos do que eu acredito. Parece óbvio, mas não é.

Semana passada, por uma questão de logística, fui convidada a representar o Cosems do Ceará num evento promovido pelo Canal Saúde. Não tinha ninguém do Conselho por aqui e me pediram este favor. Pensei: por que não? Mas fui com certo receio, o ranço se reencontrar os colegas de batente, de discutir mais uma vez num evento institucional o tipo de comunicação que desejamos para o SUS, tudo isso que me é tão familiar mas que me distanciei quando ingressei no mestrado. Lá chegando, revi alguns amigos, atualizei as novidades, e durante o evento fiquei observando o comportamento das pessoas. Laptops, tablets, celulares, máquinas fotográficas. Aquele frenesi de acompanhar o evento e postar atualizações o tempo inteiro, peculiar de nossa prática profissional, que eu conheço tão bem. Aqueles olhares impacientes, regidos pelo tic tac dos relógios. Daí foi muito estranho, porque aquilo pareceu tão sem sentido pra mim... na teoria era um espaço de discussão, na prática era uma pauta a mais, dentre tantas outras. A cabeça deu um nó.



E por aí vai, e vai, e vai... Agora estou bem, numa boa. Tenho uma companheira de morada, que se chama Martha, minha amiga de Teresina. A coisa da ‘hora certa’. Quando cansei de viver sozinha e ainda tinha medo de morar com alguém estranho, ela, recém-chegada de alguns anos em Londres, fez a proposta de morar comigo, enquanto tenta a vida no Rio. Adorei. Estamos nos afinando, na fase do puro amor. Dividir qualquer coisa que seja é um exercício diário, inclusive quando você tem aptidão. 



No dia das mães, fui conhecer a casa da Beré. Foi incrível! Quando ela falava da família dela, eu imaginava o jeito de cada um, a aparência, o barulho. A familharada toda conversando, cortando as palavras antes do fim. E foi melhor que tudo. Fui tão bem recebida que sofri de saudade na volta. Da Dona Lurdes, do Beto, do Sérgio, das cunhadas, dos amigos... Da cachorra safada, a Rebeca. Teve bom!



Já começo a pensar em como vai ser quando tudo isso acabar. Mas não vamos falar sobre isso. Não agora. Cenas para o próximo portfólio, semestre que vem, qualificada. Se Deus quiser!