sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos

Das coisas que sempre acreditei na vida, dentre as principais, está a diretriz: se queres algo, faças acontecer. Não temas. Escuta teu coração, e ele te indicará o caminho. No mais, só há o tempo aparando as arestas, dando o ponto certo à matéria úmida da vida. Parece comercial de margarina, mas é puro existencialismo. O modo como já estou me afeiçoando à nova moradia, à nova cidade, ao novo modo de fazer as coisas acontecerem, só me indica que acertei na escolha. Já sei que às 13h40 minutos, pouco mais ou menos, passa no ponto o ônibus que me leva à Universidade Federal de Juiz de Fora todas as quartas, para minha disciplina optativa. Sei também que se há barulho demais de periquitos na minha casa, é porque eles certamente entraram pela janela da cozinha e estão fazendo uma festa entre a pia e o fogão. Sei que o céu quase sempre avisa quando vai chover, e é bom não esquecer-se de estar protegido quando este momento chegar. Minha nova pequena-metrópole não tem tantos mistérios, e é por isso que já gosto tanto dela. Seu adormecer e amanhecer parecem já ter me recebido de pronto, e só preciso estar um pouco simpática ao seu ritmo. Tudo flui.

Há poucos dias tive minha primeira reunião de orientação do doutorado. Finalmente apresentei à Katia, orientadora queridona, minha proposta inteira de estudo, e afinamos muitos detalhes importantes. Farei uma etnografia de um serviço público, tomando como objeto/fio condutor a busca pelo cuidado de gestantes atendidas pelo SUS em Juiz de Fora. Quero compreender como o itinerário terapêutico oficial é moldado pelas informações, pelas mediações e pelas memórias que tais gestantes acionam durante suas gestações. Metade dessa escolha foi motivada por questões pessoais, e outra metade foi motivada pelo impacto que sofri ao assistir ao vídeo da Pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fiocruz, e que me apontou como esses três elementos articulados – informação, comunicação e memória – são extremamente significativos no processo de preparação para a chegada de um bebê, que se concretiza com a realização do parto. O parto se tornou, não à toa, um processo muito dolorido, cercado de desinformação e medo, e sei que nós, comunicadores da saúde brasileiros, temos (ou podemos ter) muito a ver com isso.

Comecei o processo de pesquisa pelo levantamento bibliográfico. Estou em estado de apaixonamento por etnografias. De alguma maneira, a perspectiva de estar em campo, de lidar diretamente com as pessoas afetadas (no bom e no mal sentido) pelas políticas públicas de saúde, me estimula fortemente. Já disse e vou repetir: adoro estudar discursos, e continuo acreditando que falar é uma forma poderosa de fazer, de agir. Mas neste momento eu queria “meter a mão numa cumbuca”, como diz nossa querida professora Adriana Aguiar, mais dotada de humanidade, literalmente. Com presença de gente sem filtro (no filter). O que já sei, e trago de trunfo, é que pesquisas etnográficas que levam em consideração os sujeitos e seus contextos, e não as doenças ou demais fatores de mobilização, são mais raros, e, portanto, asseguram importância nesses tempos. O próximo passo é identificar o lócus para o ponto de partida da pesquisa – será uma Unidade Básica de Saúde, um hospital, um grupo de militância virtual? Penso que vai depender da receptividade desenvolvida a partir dos contatos iniciados.

No fundo, no fundo, tenho percebido que estar vivo, e atento aos movimentos do mundo, é uma grande etnografia, com o benefício de ser descompromissada do Lattes. As madrugadas em claro sem conseguir dormir com medo de perder o ônibus de 4h da matina; as companhias exóticas das poltronas ao lado; as chegadas à lamacenta e hierárquica rodoviária do Rio; a complacência com tantos que, como eu, persistem em seus itinerários diários ou semanais (ficamos até um pouco parecidos); a necessidade de vestir nossa capa protetora imaginária para enfrentar a conquista do ônibus em pleno fluxo para a Avenida Brasil. Tudo isso diz tanto! As cidades e seus personagens gritam um silêncio dolorido da labuta. Quem os escuta?

Sigamos o percurso do tempo. O ano que finda, por todas as transformações, já foi muito bom.


quinta-feira, 2 de julho de 2015

Fora da nova ordem pessoal

Estou inquieta. Alguma coisa, dentro ou fora, segue fora da ordem.

Mudei de janela. Neste caso a troca foi injusta. Agora, ao invés de árvores rebeldes e bem-te-vis serelepes, vejo avenida, edifícios e zum-zum-zuns de carros. Não se pode ter tudo, é fato. Mas sigo na tentativa incansável de refazer meu ninho. Deixei o Rio porque já não podia mais com ele. Sendo tão complexa a explicação, resumo sem abrir mão das reticências: o Rio de tornou muito pra mim... Muito complexo, muito inexplicável, muito cansativo. E eu, que vinha fugindo das zonas de conforto, precisei ficar retroativa. Voltar ao ponto em que o calo começou a se fazer notável e me perguntar se havia cura. Mas já era tarde. A leveza das pedaladas nas manhãs de domingo não foi suficiente para manter acesa a chama de amor pelo “purgatório da beleza e do caos”. Eu não queria mais sumir nele. Não queria que meu desejo de uma vida mais simples e mais plena fosse reduzido a ensolarados passeios pelo aterro. Eu queria mais.

Queria morar num lugar onde eu conseguisse fazer amigos substanciosos. Onde eu pudesse lhes apresentar, sem medo de parecer ingênua, como é gostosa a intimidade do lar. Como são bons os dias de “casa aberta em noite de festa”. Queria viver num lugar onde ainda fosse possível ser bem tratado numa loja, num restaurante, num supermercado, sem que as relações de consumo precisassem ser tão grosseiras como são no Rio. Onde o trabalho fosse um espaço também de prazer, e não apenas de obrigação como parece ser, e por isso tão mal executado. Queria morar num lugar onde eu pudesse viver como bolsista, e casada, sem precisar estar numa zona ruim da cidade – sem mobilidade, sem segurança, sem energia alguma no fim do dia. Enfim, queria morar numa cidade que ainda não tivesse aprendido tão fortemente a explorar – uns aos outros, a cidade em si, o tempo e o espaço que nos provêm a custos tão exorbitantes. Uns chamam de desejo de qualidade de vida. Parece uma boa definição. Prefiro chamar de desejo de equilíbrio, fundamental para quem, como eu, fiz um pacto com a matéria subjetiva de que sou feita.

Troquei a casinha minúscula por uma casa normal (mais apta a abrigar as visitas que serão queridas), a cidade medonha por uma de médio porte, os trajetos apreensivos pelo caótico trânsito da cidade, guiados quase sempre por motoristas muito ruins, por algumas horas de ônibus em estradas montanhosas e com vista vasta para o céu. Não sei prever o que me espera neste aqui e agora, neste Juiz de Fora. Sei do frio. Sei do silêncio interno do prédio. Sei das caminhadas ladeiras acima e abaixo.  Sei do sotaque mineiro, ainda que se diga que aqui nem é tão Minas assim. O “cadinho” que é já me afaga. Sei que quero me apaixonar de novo pelo espaço que habito e, quem sabe, avançar o nível no sentimento de pertença que me é tão caro e tão raro. Quero entrar nas Minas amadas pelas bordas, e me embrenhar nelas.

O projeto do doutorado vai, assim, sofrer um deslocamento de campo. Quando ingressei, propus estudar usuários do SUS do Rio de Janeiro. Agora é provável que Juiz de Fora entre na pesquisa. Um estudo comparativo da etnografia informativa/comunicativa? Ou um deslocamento total? A primeira reunião de orientação, que ainda não aconteceu por conta da licença de pós-doutorado de minha orientadora, já tem a tarefa de aparar essas arestas.

Sei que equacionar desejo de pesquisa, com necessidade de pesquisa, com peculiaridades do espaço e tempo em que habitamos, com nossa vontade de potência... ufa... é uma tarefa difícil demais. Mas essa disciplina de portfólio tem me mostrado que estou bem acompanhada. Ela se tornou uma ponte entre mim e os demais colegas de turma, já que não estou com eles na maior parte das disciplinas, haja vista aquelas que consegui dispensar por ser egressa desse programa de pesquisa. É bom ver os questionamentos problematizados não apenas nas apresentações, mas nos fóruns que nos desarmam e desnudam cotidianamente. Cada vez mais raras, essas vivências são as que definitivamente nos marcam.

Por fim, queria registrar que ainda estou sobre este impacto da mudança de cidade, de casa e todo o pacote de referências que vem junto disso. Dia desses fiquei tão atordoada com essas coisas todas que resolvi trabalhar, como saída para ancorar minimamente o pensamento. Comecei o exercício de revisitar minha dissertação para ver o que posso aproveitar em artigos, em apresentações para eventos próximos etc. E foi tão bacana fazer isso! Relembrar a tessitura da obra, resgatar as razões que mobilizaram a escolha das análises, a divisão em capítulos... reconhecer a autora que me tornei através de um processo tão legítimo de construção, composto de todos os erros e acertos próprios. Fiquei orgulhosa. E vi que às vezes, quando tudo parece bagunçado dentro e fora da gente, basta acionar os dispositivos de memória que possam nos lembrar de quem nós somos – de onde viemos e o que nos trouxe até aqui.

A ordem, desordenada que seja, vai achar o seu caminho de volta.


domingo, 26 de abril de 2015

O primeiro Portfólio. Pela segunda vez.

15 de maio de 2014. Dormi muito mal na noite anterior. Um sono leve, fragmentado, repleto de pequenos sonhos expressionistas. Clarisses deformadas sofriam em tribunais antigos. Acordei tensa e mal humorada. Chequei a bolsa pela milésima vez antes de sair de casa: pen drive, ok, dvd, ok, arquivo no dropbox, ok. Na dúvida, resolvo de última hora levar meu próprio notebook. No ponto de ônibus, acompanhada do meu atual namorido, espero o 498 ou o 497 que nunca chegam. Penso: o suco na bolsa vai começar a descongelar e vai esquentar, além de molhar tudo. Resolvo pegar um táxi. No caminho, o motorista relapso bate na traseira de um ônibus. Ainda que de leve, demora um tempo a resolver. 15 minutos que pareceram uma perfeita eternidade. Minha barriga doía. Imaginava Kátia me esperando para uma pré-apresentação antes da sabatina oficial. Suava frio.


Minha defesa do mestrado aconteceu depois de muito medo, de uma luta intensa entre a senhora da dissertação de título grande, e a Piá assustada com o fim do ciclo, e com a necessidade de expor de forma madura a pesquisadora que havia nascido nos dois anos e dois meses que antecederam a data. Sofri por tudo: pelo ritual de apresentação, pela sala ficando cada hora mais cheia, pelo tempo curto, pela cabeça doendo... talvez de fome, de ausência de tudo que não consegui comer e que as infinitas idas ao banheiro antes da apresentação terminaram por levar embora. No final, ah o final, deu tudo mais do que certo. Talvez tenha sido exatamente o sofrimento que me fez perceber que aquilo era só uma devolução de chaves. A travessia pela sala por horas escura, por horas iluminada do aprendizado do mestrado eu já havia superado, e a porta eu transpus quando entreguei as versões impressas do trabalho.

O dia da defesa do mestrado, sorriso de alívio

8 de dezembro de 2014. Trabalhando no portal de notícias da Fiocruz, retorno do almoço na cantina e visito o site do Icict, sem muita esperança de que o resultado da seleção já tenha sido divulgado. Coração vem na boca quando leio a notícia “Sai relação de aprovados para o Doutorado 2015 do PPGICS”. Sem nomes, a lista revela a classificação pelo número de inscrição. E eu estou lá, aluna do PPGICS mais uma vez! O fio da memória me leva de volta ao final de 2011, quando também abancada em minha mesa de trabalho no Cosems, li sozinha o resultado final de um processo que fiz em segredo. Diferentemente de agora, quando os professores, corredores e trajetos já me são de algum modo íntimos, naquele tempo eu não tinha noção do que me esperava. Neste 2014, novamente em silêncio, checo diversas vezes antes de anunciar aos colegas de sala. Sou eu mesma, não há mais dúvida, materializada numa sequência impessoal de números. Muitos abraços chegaram com a novidade, e minha mãe, do outro lado da linha telefônica, gritou muito mais do que eu.

Turma PPGICS 2012

Algum dia do mês de fevereiro de 2015. Os dias que seguiram após o resultado vieram recheados de fortes emoções e toneladas de questões. Conseguiria permanecer no trabalho e cursar o doutorado ao mesmo tempo? Ou, no oposto disso, daria conta de voltar a ser somente bolsista? Não era só uma questão financeira, mas era também. Hoje eu sei o quanto custa o Rio, em todos os sentidos. Vivo numa cidade cuja especulação imobiliária duplicou o valor do quarto e sala em que vivo desde sempre. Visitar a família tornou-se um evento mais raro a cada ano, e sofri muito com isso. A cidade me deu o aterro do Flamengo aos domingos, e o Jardim Botânico em todas as crises de mesquinharia. Mas eu vi de perto um tiroteio, e cansei de tentar entender a dinâmica da Avenida Brasil. Não sou mais a piá de antes. Soterrei em algum clássico túnel carioca a minha ingenuidade de outrora, e ainda pelejo para construir novas formas de desenvolver meus afetos, em códigos culturais tão distintos dos meus de origem.

Nuns dias, a perspectiva de seguir dando asas à pesquisadora dentro de um programa de pesquisa que eu gosto, com pessoas com as quais me identifico fortemente, me enchia de alegria e orgulho. Noutros dias, o horizonte de mais quatro anos de Rio e de todas as contradições que estar aqui representam pra mim, se transformavam em medo de enfrentar outra vez essa jornada. Agora não é mais o desconhecido que me assusta, mas justamente o que eu vi e vivi ao longo dos três anos completos exatamente no aniversário de 450 anos da cidade. Talhou-se uma adulta, e meu desafio hoje é não deixar que a Piá se torne muda.

17 de março de 2015. Meu aniversário de 32 anos. Já estou vivendo os últimos dias como jornalista do portal. Não poderei ficar. Tanto por uma política de capacitação de terceirizados inexistente na Fundação quanto pelo meu próprio reconhecimento e aceitação de que eu não conseguiria me dedicar ao doutorado como gostaria se continuasse trabalhando, optei pela vida de estudante outra vez. E como bem disse uma amiga querida: que bom que pude fazer isso, que tive o mérito dessa escolha. Comemorei a data vindo para o primeiro dia de aula da disciplina Ciência, Meio Ambiente e Saúde: os desafios da divulgação científica na atualidade. Hoje ela ocupa as minhas tardes de terça, e durante as manhãs estou em Seminários I, vivendo a experiência de me localizar aos poucos numa turma nova, que já tem os seus modos de ser, de agir e de conviver, aos quais pertenço apenas em partes, total coadjuvante.


Equipe do Portal de Notícias da Fiocruz

Minha pesquisa, espero, será a realização de outro sonho: o de ouvir os usuários do SUS. Compartilho da ideia de que informação e comunicação são partes intrínsecas do processo de construção de um itinerário terapêutico. Mas quais as informações que eles dispõem e acessam quando precisam usar um serviço de saúde? O quanto há de suas respectivas culturas influenciando na tomada de decisão? Como a memória social, e coletiva, e as mediações que acontecem nos territórios dão vazão ao caminho que eles desenvolvem, a despeito do itinerário oficial determinado pelo Ministério da Saúde? Esses usuários são em algum momento consultados, ou suas autonomias são respeitadas nesse processo? Quero estar com eles, e ouvir deles as relações de poder implicadas na dinâmica de suas fragilidades.

Sei que tenho um longo caminho pela frente. E sei que as dores e alegrias serão distintas das que vivi quando saí de casa em 2012 para construir a minha vida carioca, a minha história “estrangeira”, a minha nordestinidade preservada com samba no pé. Mas o mestrado me ensinou a beleza e o valor da travessia. E é nela que desde aquele dezembro emprego, outra vez, toda a minha energia.