terça-feira, 22 de outubro de 2013

O último portfólio



Conheci dia desses uma frase ótima: isso que chamam de mestrado é, na verdade, uma máquina de fazer doido. Desconheço o autor, mas como ele tem razão! Minha loucura, que já saía de todos os buracos da minha cabeça, agora pressiona o corpo inteiro. Tudo dói. As costas, as imediações do pescoço, os olhos fundos e pesados. O pulso fisgando a cada clique no botão direito do mouse. Agora sim fiquei sem muito tempo para abstrações. Para frequentar as praças e os bares da cidade. Sequer para ir às manifestações de rua. Justo na hora que ficou bom...

Os dias chegam, vão, e milagrosamente ainda lembro-me de pagar as contas e de manter abastecida a geladeira. Viver agora é cumprir um cronograma pregado na parede em frente ao computador, cercado de palavras-chaves escritas em papel neon. Não há dia que não voe. E só Nina Simone me entende, enquanto faço download de matéria de jornal, cantando baixinho, noite adentro, no limite de dormir sentada e saltar para a cama. Até vir o sol e começar tudo outra vez.

Resolvi entrar na academia porque já não dormia direito, mesmo esgotada mentalmente. Agora, depois de uma aula de jump e uma ducha morna, difícil é levantar, tão perfeito e profundo é o sono! Há também alguma vaidade nisso, agora absolutamente assumida. Depois dos 30 comecei a pensar que já tendo me disposto a mudar de cidade, a fazer mestrado e a viver longe de casa, por que não ficar mais bonita também? Fato é que a combinação ‘mente sã, corpo são’ agora é uma tradução literal nas imediações do catete, sem técnicas mágicas. Dura é a vida, menina, já dizia minha avó. Estudar, fazer dieta, malhar e dormir bem. Tá, e tomar um chopinho um domingo ou outro, porque se não teria nascido outra pessoa no lugar da Clarisse. E aí seria caso de internação. 

Mesmo não precisando mais, em termos quantitativos, resolvi cursar a disciplina Análise de Discursos, com a professora Inesita. Já disse à ela que agora carrego uma mágoa de caboclo, porque se tal curso tivesse sido ofertado antes, minha cabeça estaria teoricamente muito mais organizada e potente em tudo, inclusive na qualificação. Mas o que não tem remédio, remediado já nasceu. E eu só quero saber o que pode dar certo, seguindo à risca a receita de Torquato. Tem sido muito bonito e muito revelador o aprendizado.

Estive no Intercom, em Manaus, apresentando um trabalho no GP que não tinha ‘Saúde’ no título, mas que foi totalmente dominado pelos representantes da Fiocruz. O professor que apreciou meu trabalho, assim o definiu: está muito bacaninha, e tem o formato bem adequado à proposta do PPGICS. Adequar-se, às vezes, é muito gratificante.

Como se não quisesse focar no dia da defesa da dissertação, empurro para frente o pensamento e esbarro em outro sofrimento: despedir do Rio justo agora que criei minhas preferências? Que aprendi a viver essa cidade tresloucada, sem pecado e sem juízo? Agora que já não me faltam companhias para carnavalizar? Agora que até um relacionamento fixo, porém aberto, apontou no meu caminho, para invernos rígidos ou não? Minha família evita, eu sei, mas sinto que a cada dia que passa, a pergunta me espreita com mais proximidade: chegou a hora de voltar?

O Rio me deu várias coisas e me tirou outras tantas. Não me sinto capaz agora de mensurar, e talvez nem seja mesmo a hora, mas pensar que este é o meu último portfólio com fala, com blog, que aqui começo a me despedir, pelo menos oficialmente, de vários colegas com os quais não consegui tecer maiores intimidades, já me aperta o coração e a garganta. E me aperta mais ainda os outros tantos que me deram muitos risos e acolheram alguns prantos. Nesta vida feita de pessoas, e dos sentidos que as povoam, eu careço de coração mais substancioso, para aguentar seguir sempre em frente, confiando no que vai ficar.

A todos vocês quero fazer a minha homenagem singela. Pois comigo, Cazuza esteve errado. O Cristo abriu os braços e me protegeu. E seja qual for o meu destino, haverá paradeiro para o nosso desejo, dentro ou fora de nós.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O dia D

Nasci competente para rituais. E por isso cuidei de imaginar a mesa posta, cuja oferta lembrasse o que me apetece. Ou de onde vim. Saí catando no Rio castanhas de caju, rapaduras, bolachas secas, quebra-queixo, café. Depois disso arrumei a sala, pensando com cuidado na disposição das cadeiras, e arranjando modo de respirar fundo, focando sempre na real importância da situação. Nem mais, nem menos. ‘É um momento positivo’, todos me diziam. ‘Aproveite bem a oportunidade’, bradavam outros. E a barriga cada vez mais embrulhada, que somada à fraqueza das pernas e aos lapsos da memória, me jogaram cedo numa ansiedade difusa. As células todas histéricas.

Sou competente para rituais, mas nem tanto.

A qualificação foi muitíssimo dolorida. Eu estava lá, com o meu projeto, o que eu levei dias e noites escrevendo, apagando, remendando... mas até ele parecia arisco. Tinha criado forma própria e não me ouvia mais. Ainda quis aparar, no ato do escrutínio, suas arestas. Causar-lhe obediência. Mas eu estava nervosa demais para ter um corte certeiro, direto, objetivo. Então naquele ‘dia D’ o projeto disse de mim muito mais do que eu disse dele. Estávamos sim misturados um no outro, banhados das mesmas angústias, mas agora eu era a escultora, tentando compreender se o que eu havia feito até ali ainda era matéria fluida. Lutando contra o tempo pela parcela que ainda não havia enrijecido pelo tempo de execução e por todas as referências ali embutidas.

Ouvi todas as críticas – anotando e gravando – e depois de assistir o vídeo inteiro duas vezes, concluí que o meu pacote foi completo, para todos os gostos. Quase um combinado de 48 peças! Questionaram praticamente tudo: relevância, objetivos, referencial teórico, métodos. No fim das contas, o projeto era bom, mas se eu girasse as velas do barco e mudasse a direção da busca, ficaria melhor ainda. Só isso. Não houve muito diálogo com a proposta. E aqui eu deixo para sempre registrada a minha mais profunda gratidão e admiração à postura da minha orientadora, que respondeu comigo, em ato, ao que pôde ser respondido, e não deixou que eu me sentisse sozinha um instante sequer. Indefectível.

Cheguei em casa e postei qualquer coisa tão reflexiva no facebook que, dias depois, nosso amigo Marcelo me encontrou na cantina da Fiocruz e, com toda a sua sutileza, falou assim: ‘o que foi? Não aguenta não, minha filha? Então sai da Academia!’ Daí eu pensei: aguentar eu até aguento... Mas tem que ser calada? Armaria, naaaaaammmm...

Confesso que demorei muito tempo para assimilar e categorizar o que me disseram: isso aqui foi sobre o projeto, isso aqui foi sobre eles, isso aqui foi sobre os autores, isso aqui foi sobre os métodos e isso aqui foi sobre a obra. Mas hoje as coisas estão ajustadas. Estou desconstruindo parte do que esculpi, mas uma parte boa vai sim permanecer. E muita água ainda vai passar por baixo dessa ponte, que teimará em permanecer de pé!

Volto agora de 20 dias em casa. Fui reabastecer as energias e esclarecer algumas coisas práticas sobre minha pesquisa. Provavelmente necessitarei estar lá no Ceará mais tempo que o previsto, mas isso ainda se ajusta. Antes de ir, no entanto, tive a imensa oportunidade de assistir a uma aula com Ariano Suassuna, gratuita, no Teatro Municipal. Dentre todas as coisas que ele falou em mais de duas horas de conversa (adendo: ele tem 86 anos!), uma foi especialmente para mim. Disse o escritor: eu não acredito em gente que não sonha, que não tem sonhos, que não faz dos sonhos o seu norte, a sua esperança, a sua bandeira de luta.

Então, Marcelo, eu queria te dizer que eu aguento sim. E que eu vou seguir sonhando. Sem dúvidas sobre a direção das velas. Não mais.



segunda-feira, 29 de julho de 2013

Cidade maravilhosa

Quinze para as três da tarde de um domingo pós-feriado prolongado. Tomamos um táxi na rua de casa porque o ônibus não passou, e já estávamos bastante atrasadas, mesmo para os padrões cariocas, quando atrasar é normal. No caminho foi que soubemos pelo rádio do carro que logo mais a noite haveria jogo no maracanã: flamengo e botafogo. Um breve silêncio interrompido pela constatação da amiga que me acompanhava: então é isso mesmo... vamos subir o morro pela primeira vez num dia de jogo do flamengo. Sorrimos de imaginar as situações possíveis. Um medinho bem burguês... Mas quem não tem os seus?

Duas e meia da manhã do dia 16 de março, em 2002. O carro dos bombeiros vai subindo o morro devagar, escoltado pelo carro da polícia militar. Numa das curvas o encontro: traficantes armados, ao observarem aquela subida não avisada, levantam seus fuzis e se direcionam para um confronto, quando Tião desce do banco do passageiro do 190, com as mãos pra cima, gritando: calma, calma, foi a minha filha que nasceu! Enquanto isso, Eliete, que não conseguiu descer o morro antes da bolsa romper, já tinha dado a luz à Ellen, na sala da primeira casa que lhes abriu a porta, quando a hora chegou. E o pai teve que buscar lá embaixo os bombeiros, que não subiam sozinhos de jeito nenhum.

Quando saltamos do taxi, a realidade ali exposta já era bem outra. Tião nos esperava com um sorriso aberto na entrada da comunidade de Santa Marta, a primeira favela pacificada do Rio de Janeiro, e o que víamos naquele domingo ensolarado era um mar de casas coloridas, quase brotando do chão e ficando pequeninas, miudinhas, quanto mais alto ia se tornando o morro que ainda víamos de baixo. Uma visão realmente alegre, convidativa, e rápido me senti dentro de um comercial da coral, tipo ‘tudo de cor para você’. E minha primeira observação sobre o nosso anfitrião, além do seu admirável bom humor (aquele tipo de gente que ri com o estômago), foi o fato de ele ter cumprimentado dezenas de pessoas ao longo do passeio, e delas terem retribuído com a mesma simpatia com a qual eram abordadas. Ele estava realmente em casa, e nós começávamos a participar da ambiência dele, naturalmente.

É que o pré-requisito para a recepção já havia sido traçado desde 2009, 2010... quando comecei a conviver com Renato, um dos irmãos de Tião, que há mais de 20 anos mora no Ceará, com quem tive o grande prazer de trabalhar junto e de cobrar dele o meu cafezinho diário, normalmente por volta das duas da tarde, que vinha sempre acompanhado de uma história divertida, dos ‘tempos do Rio de janeiro’. Eu nem imaginava que moraria aqui um dia, mas foi o Carioca quem primeiro me deu um Rio de presente, através das suas narrativas. Foi dele que aprendi as primeiras noções de comunidade, e na cidade das histórias dele, tudo era também muito colorido. Então naquele domingo eu era apenas a amiga do Nato, portanto ‘gente da família’ e tudo certo, tudo bem.

Foi assim que entramos no bondinho (que mais parece um trem, já que funciona em trilho) e enquanto subíamos comecei as minhas perguntas habituais: se o morro estava mesmo tranquilo, se havia mudado muito ao longo do tempo, se Tião ainda tocava na bateria da São Clemente, se os filhos gostavam de viver lá... uma matraca, sem conseguir ficar calada. E Tião, com um prazer de brilhar o olho, me dizia que ‘sim, hoje está tudo muito diferente, muito melhor’, ‘presta atenção, eu sou é do sereno’, ‘meu filho mais velho dança tudo o que você imaginar’, ‘o do meio é o único estudioso e também dá aula de percussão’, e a mais nova já sabe que ‘negócio de namorado dormir em casa, só se for do lado dele’.

Quanto mais alto subíamos e mais bonita ficava a vista, mais Tião buscava no seu baú de memórias o morro do seu passado, da sua infância. Nos dizia que tudo o que agora víamos de cimento, era barraco de madeira. Que para construir era preciso subir com o material a pé, e que todo mundo ajudava no caminho. Mostrava nas paredes agora grafitadas com arte as marcas de bala, dos tantos fuzilamentos já realizados nos muros. Contou-nos da atuação da Associação dos Moradores, da ONG Atitude Social, e de uma forma de viver no morro que mudou muito ao longo do tempo. ‘A vida melhorou bastante, mas hoje está tudo maior, as pessoas se conhecem menos, os mais novos não respeitam os mais velhos e os mais velhos também não interferem mais tanto nas famílias. No meu tempo, quando um moleque se chegava perto duma mesa de bar, o avô dava logo um cascudo, e mandava sair de lá’. E eu, cá com meus botões, somava ao dele o meu lamento e pensava baixo: antes fosse só no morro, Tião... antes fosse.

Fomos até um dos mirantes da comunidade (sim, tem vários) e registramos, maravilhados, aquela Baía de Guanabara, observando que agora pequenos e frágeis nos pareciam os seus barcos, e não nós. Gostaria de soprar, e ver se os removia de lugar... Neste percurso estávamos acompanhados também de uma amiga dos tempos de escola de Tião, que há muito mora no Rio Grande do Sul e que naquele dia apresentava à filha o seu local de nascimento. E pude sentir a felicidade dela, de perceber tudo tão mais urbanizado, de comprovar um direito concreto de ir e vir, acompanhada de uma certa angústia por não conseguir identificar a casa de amigos antigos, nos becos agora tão estreitos.

Durante a descida, eu já havia parado de perguntar. Fui arrastada por uma sensação estranha e curiosa de prazer e de dor. Cada batente que eu transpunha, revelando uma possibilidade nova de entrada e saída de alguma rua (se é que se pode chamar aquilo de rua), me transportava para um outro lugar, fora e também dentro de mim: para uma venda com uma senhora muito, muito velha, na janela; para uma igreja evangélica; para um salão de beleza; para uma casa cheia de passistas produzidas com suas roupas de ginástica. Para um esgoto correndo ladeira abaixo, para muito lixo espalhado, ou exatamente para o contrário: um beco limpinho, enfeitado ainda com bandeirinhas de São João. A praça onde Michael Jackson desceu e que agora tem sua estátua, a aula de percussão lotada de turistas estrangeiros, e finalmente a casa de Tião, e de Eliete, com aquele sorrisão aberto.

Eu nunca, nunca mais, vou dizer que minha casa é pequena. Saber aproveitar espaços, na favela, não é luxo. É necessidade mesmo. A casa de Tião é uma das tantas outras que foi crescendo pro alto, laje após laje. Assim, a área do churrasquinho fica sobre os quartos, que fica sobre a sala e a cozinha, e ligando tudo isso, algumas escadas, para as quais é preciso desenvolver a ciência da verticalidade. Tanto que fiquei na dúvida se aceitava a cerveja, imaginando minha incompetência para descer aquilo ao final. Na dúvida, assistimos ao jogo do Fogão na sala, melhor para todos nós.

É claro que fiquei apaixonada. Não só pelo churrasco da Eliete e pelas histórias do nosso anfitrião, mas porque ali, no meio daquele aperto, estava materializada uma lógica que faz muito sentido para mim: de uma simplicidade que se completa no outro. Nada num nível intelectualizado. É na prática mesmo: é impossível fazer qualquer coisa no morro sem esbarrar na convivência com o próximo, e por isso ela tem que funcionar. Quando o vizinho de Tião quis subir a laje dele e perguntou se a família se incomodaria de perder a vista para o Cristo, ele assim respondeu: ‘se é para melhorar a vida da sua família, faça sua laje, porque o Cristo eu posso ver de todo lugar’. E no fim, está todo mundo no mesmo barco mesmo. Ou em canoinhas interligadas... se afundar uma, afundam todas.

Claro que um domingo é pouco para dizer que conheço o morro. Acho que não conseguiria afirmar isso nem que vivesse por lá alguns anos. Quem sabe uma vida toda, como Tião, que agora com seus 54 está curtindo a melhor fase do Santa Marta, mesmo consciente do quanto ainda pode e deve melhorar. Mas posso dizer seguramente que poucas experiências me impactaram tão positivamente quanto esta. Talvez porque eu tenha entendido que a minha vida está muito longe de ser o único modelo possível, mesmo na minha nada ousada ideia de progresso. Ou talvez porque eu estivesse com saudade de quem me abrisse as portas de casa e dissesse: entre e fique a vontade! O que é raro por aqui. Ou talvez apenas porque aquela família seja merecedora de todo o meu apreço e minha admiração: viver com uma dignidade que se conquista na raça, que não é dada de mão beijada, que não se pode sequer tentar comprar em bons colégios, é uma coisa que sempre vai me emocionar.

Fui tocada em definitivo por um modo de ser e viver que me pareceu muito mais real, visceral, integral, e por isso mesmo mais dotado de tato e paladar. Porque no Rio é preciso ter cuidado para não deixar que a visão, e todas as fotografias possíveis, sejam tudo o que existe. Porque é uma cidade linda mesmo, sem dúvida que abale. Mas faltava uma coisa que ligasse, na minha cabeça, tanto contraste. Que me dissesse que tantas cidades são, sim, uma cidade só, mesmo com formas tão distintas de existir. De pescar o peixe e fabricar o pão. Nada contra o asfalto, não me entendam mal... Mas foi o morro, e a vida que de lá pulsa, que me deu uma vontade sincera de dizer que o Rio de Janeiro começa a se parecer com o que eu entendo por uma cidade maravilhosa.


Seu Renato, Tião e Eliete, muito obrigada.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Mais afeto, por favor


Não está faltando amor no mundo. E eu estou desolada com essa descoberta. Porque a dor me pareceu sempre o caminho mais natural das coisas... O desafeto, o desamor, o desencontro. A gente nasce, cresce, apanha, aprende (ou não), envelhece e morre. E no meio de tudo isso, a gente dói. Tudo bem, tudo bem... a gente se diverte também... mas o drama tem muito mais glamour. Desde Shakespeare é assim.

Então eu achava sempre que o amor tinha a ver com isso tudo. Eterno culpado. Se alguém era feliz, era porque conhecia o amor. E se era triste, era porque isso lhe faltava. Ou, como nada é tão óbvio assim, alguém também podia ser infeliz por amar demais. Ou de menos. Geralmente demais, porque amar é ser generoso em matéria bruta. E eu acho mesmo que o mundo seria muito, muito melhor, se houvesse ‘mais amor, por favor’.

Acontece que há. Se a gente olhar bem, com tempo e com audácia, a gente consegue enxergar amor em todos os lugares. Em todos os formatos. Na neta que acompanha a avó com sua bengala pela rua. No cheiro de pão que sobe o asfalto todos os dias em que saio cedo de casa. No gesto de quem te dá passagem pela calçada estreita. Na honestidade de quem avisa que ‘moça, sua bolsa está aberta’. No papo bom com o recém-estranho ao lado. E ok, nos casais também! Os que mandam beijos pelas janelas dos ônibus sempre me deixam emocionada... Isso tudo pode ser apenas civilidade, educação, compromisso. Mas também pode ser apenas e tão somente amor.

E antes que se conclua que eu surtei, eu reconheço que há desamor também. Claro. Em excesso. Mas não é disso que quero falar agora. O ponto é outro, e é outra a conta que não fecha.

O que eu tenho visto é que o amor mudou. E foi a gente que fez isso com ele. É a gente, aliás, que faz isso com ele todos os dias, quando nega nossa capacidade de se dar a toa, na bobeira dos dias comuns. De aceitar os pedidos de desculpa, e de se desculpar também. De se permitir ser dois, ou três, ou dez, sem que pra isso precise, necessariamente, deixar de ser um.

A gente muda o amor porque não sabe mais o que fazer quando ele chega feita onda, transformando sem dó o que já estava absolutamente conformado. Abrindo todas as nossas janelas e nos destituindo dos poderes que custamos a acumular com os anos. São todos tão dignos, não? Poder de saber quando está sendo enganado, de reconhecer quando alguém está dizendo a verdade, de julgar quando qualquer coisa sai do padrão das nossas crenças e manias... Eu, por exemplo, tenho o superfantástico poder de antecipar o fim das coisas. Tenho tanta certeza que ele virá, que eu prefiro me desesperar logo, e resolver de vez o ‘problema’. Logo eu, que amo tanto, mato o amor de sufoco.

Desenvolvemos, com o passar do tempo e a força das tecnologias, preciosas habilidades. Todas temperadas pela cultura do medo, da violência e do consumo. Por conta delas, a gente empacota o amor e põe na estante, ou manda por sedex. Edita o amor e publica na internet. A gente higieniza o amor, querendo sempre só o seu lado bom. O lado que cheira a flor...

Então esses dias eu comecei uma nova campanha. Nela, ao invés de pedir mais amor, vamos sair por aí pedindo mais afeto, substantivo comum de afetar-se, de dispor a alma, de nutrir. Deixar-se tocar sem cura, e refletir sem filtro. Afeto descontrolado, que ruborize nossa face e que arrepie nossos poros. Sem explicação que convenha. Sem motivação necessária. Afeto-ato. Orgânico. Voltando ao estado mais natural possível das coisas e dos gestos.

Num nível mais interpessoal, que seja uma campanha por qualquer coisa que não traga junto uma decisão elaborada, pré-construída, seja ela qual for: de casar, de ficar junto, de ficar só... Campanha para que o afeto seja o insight de uma nova direção. Nem que seja por um dia. Nem que seja por hoje.

Não está faltando amor no mundo. A gente só precisa resgatá-lo.


quarta-feira, 22 de maio de 2013

O presente desse instante


Ela estava lá, sentada naquela pedra imensa. Magra que era, pura coragem. Sentada nos recifes que moram na beira da praia. De ressaca, o mar e ela. Tudo batia em seu rosto, quando cada onda chegava com força. E ela sorria, tanto quanto engolia água salgada, liberta do peso das esperas. Sorria porque tinha aprendido a viver. E que a vida seria sempre isso, tapa na cara do conforto. 


Não era eu no filme. Era Verônica. Mas podia ser, com minha mania de deitar a cabeça na janela da sala, e ver o Rio invertido. Sem chão. Só nuvem, noite adentro. O que é a noite quando chega? Eterna, arrastada, silente. Podia ser esse eu, que aprendeu a estar aqui. Eu e tudo isso que me ocupa as têmporas. Os receios. As vísceras. “De um lado a vida e do outro a vida” (LIRA, J.P. DE, 2012).

Foi demorada a chegada do estado da aceitação. Antes disso, de deixar a onda bater com força, eu era pura reação. À solidão, à cidade, aos trinta, à Academia, ao desejo de mudar. Foi demorada a dissolução. Entrar no ônibus e perceber que sou parte de tudo isso que compõe o barulho da Babilônia. Perceber que, ao contrário do que eu imaginava, ninguém está sacando que eu não sou daqui. O desapego da condição de estrangeira. As questões eram todas minhas, sempre foram, e eu sofri arrastando as correntes que me exigiam olhar para os lados, ansiando compreensão. Agora foi. Arranquei as caneleiras e estou correndo. A liberdade começa a fazer sentido.

“Eu sei que a felicidade é conselheira da sorte. Hoje eu sei” (LIRA, J.P. DE, 2012).

Recebi ontem a terceira versão do projeto de qualificação. Já ultrapassei as 25 páginas recomendadas em média e ainda tenho tanto a dizer que me desassossega o peso do limite de espaço. No primeiro momento, a orientação de refazer todo o contexto histórico do SUS já escrito, muito linear para quem quer deixar claro que todas as questões foram construídas sobre tensões, discordâncias e hegemonias. Fazer a história sofrer seus cortes. Esgarçar até o limite do possível.

No segundo momento, o jornalismo. Suas especificidades abusadas, suas instâncias viciadas. Representar, ao que será que se destina? (NETO, T.). Por que estudar a mídia e nunca desprezar a importância do “e agora”? Como estar ciente do poder simbólico sem temer sua onipresença e sem afogar a mais genuína esperança? O que diferirá o meu projeto de qualquer outro que se ancore na histeria de decifrar os sentidos? Eu, de novo, e a soma de todas as minhas experiências. O mar batendo em meu rosto. É isso. O que há de especial no meu projeto é que ele é meu, fruto do meu olhar sobre o mundo, que há de servir para alguma coisa proativa que seja.



O que me ajuda a manter a lucidez é nunca esquecer o que me trouxe aqui. Não esquecer que o meu objeto me escolheu, desde criancinha. Não apenas pelo meu pai, que sempre foi única e exclusivamente médico do SUS. Não apenas pela infância no interior do Ceará, bebendo leite de cabra e comendo pão de milho moído a músculos e rancores de meus irmãos. Não apenas pela formação educacional católica, pelo altruísmo impregnado herdado das mãos finas e das saias longas das irmãs salesianas. Não apenas pelo signo de peixes e a condição de estar a par da alteridade e da comunhão. Mas por tudo isso que me põe viva: pai, leite, escola, signo, relações. Porque meu objeto fazia sentido antes de ser objeto. Quando era apenas o desejo de não cruzar os braços para a dor do mundo. Das filas, das esperas, dos silêncios dos que desconhecem a razão de questionar.

Fiquei feliz igual 'pinto no lixo' quando o professor Valdir aceitou compor minha banca de qualificação. Não só porque ele aceitou, mas porque é ele. Uma pessoa generosa. Incrível. Poxa... Pensem num time: Kátia, Valdir e eu? O outro membro que se cuide, porque a energia vai ser massa!!

Na aula inaugural do ICICT este ano, duas falas me chamaram atenção. Primeiro a de Marcelo Rasga Moreira, da Escola Nacional de Saúde Pública: “A ciência não diz a verdade. A ciência dá respostas”. Portanto, ela só existe se existirem as questões e paixões que as motivam (grifo meu). E a minha questão é o ponto de partida, o território de apropriação do que está posto: qual o discurso construído sobre o SUS pela mídia impressa do Ceará e por que? Depois, o contraponto de Caco Barcellos, jornalista convidado: “O jornalismo não diz a verdade e nem dá respostas. Só observa e fornece um olhar sobre a vida e os acontecimentos”. Um olhar diferenciado porque fornido das mais privilegiadas percepções. Era isso mesmo: quando me apaixonei pela saúde pública como grande pauta jornalística, tudo o que produzi eram recortes meus, constituídos do que eu acredito. Parece óbvio, mas não é.

Semana passada, por uma questão de logística, fui convidada a representar o Cosems do Ceará num evento promovido pelo Canal Saúde. Não tinha ninguém do Conselho por aqui e me pediram este favor. Pensei: por que não? Mas fui com certo receio, o ranço se reencontrar os colegas de batente, de discutir mais uma vez num evento institucional o tipo de comunicação que desejamos para o SUS, tudo isso que me é tão familiar mas que me distanciei quando ingressei no mestrado. Lá chegando, revi alguns amigos, atualizei as novidades, e durante o evento fiquei observando o comportamento das pessoas. Laptops, tablets, celulares, máquinas fotográficas. Aquele frenesi de acompanhar o evento e postar atualizações o tempo inteiro, peculiar de nossa prática profissional, que eu conheço tão bem. Aqueles olhares impacientes, regidos pelo tic tac dos relógios. Daí foi muito estranho, porque aquilo pareceu tão sem sentido pra mim... na teoria era um espaço de discussão, na prática era uma pauta a mais, dentre tantas outras. A cabeça deu um nó.



E por aí vai, e vai, e vai... Agora estou bem, numa boa. Tenho uma companheira de morada, que se chama Martha, minha amiga de Teresina. A coisa da ‘hora certa’. Quando cansei de viver sozinha e ainda tinha medo de morar com alguém estranho, ela, recém-chegada de alguns anos em Londres, fez a proposta de morar comigo, enquanto tenta a vida no Rio. Adorei. Estamos nos afinando, na fase do puro amor. Dividir qualquer coisa que seja é um exercício diário, inclusive quando você tem aptidão. 



No dia das mães, fui conhecer a casa da Beré. Foi incrível! Quando ela falava da família dela, eu imaginava o jeito de cada um, a aparência, o barulho. A familharada toda conversando, cortando as palavras antes do fim. E foi melhor que tudo. Fui tão bem recebida que sofri de saudade na volta. Da Dona Lurdes, do Beto, do Sérgio, das cunhadas, dos amigos... Da cachorra safada, a Rebeca. Teve bom!



Já começo a pensar em como vai ser quando tudo isso acabar. Mas não vamos falar sobre isso. Não agora. Cenas para o próximo portfólio, semestre que vem, qualificada. Se Deus quiser!

terça-feira, 2 de abril de 2013

400 é pouco?

Um ano. Quando o Rio de Janeiro fez 448 anos, eu apaguei a primeira velinha de aniversário da jornada de piá.


Foi a rádio do táxi que me deu essa informação na chegada. E achei engraçada a coincidência. Estávamos em festa, a cidade e eu. Curtindo a espreita do novo. Ou do velho que reincide e se renova. Sentindo. Rangendo. Amadurecendo. Tudo do jeito que eu gosto, no gerúndio.

Olho em volta e cada centímetro do meu apartamento é um mosaico dessa história. Os quadros, os armadores para redes, as cortinas, o carrinho de feira, a plantinha ressentida, as fotos na parede ao lado da mesa do computador... Tudo existe por escolha e determinação minhas. Tudo cheira a mim. Tem a cor dos meus dias e o som das minhas gargalhadas. Tem o ecoado triste de todas as lágrimas. Tem a lembrança de todo mundo que já veio e já foi. Meu rastro num álbum de concreto: teto, parede, chão.

Não parece que foi ontem. 400 dias de desconstrução, negação e reafirmação.

Para ser sincera, às vezes eu acho que já fiquei tempo demais. Ou desaprendi a medida do tempo para cada coisa tomar seu rumo. E assim a pressa parece que se arrasta.

Durante as férias (nem tão férias assim), em Fortaleza, fiquei um bom tempo imersa no mestrado, dedicada a dois trabalhos: da disciplina de Saúde, Mídia e Mediações, e da disciplina de Memória, Mídia e Doenças. Nas duas situações eu tinha a opção de escrever uma relação da disciplina com o meu objeto de pesquisa, mas só consegui fazer isso em uma delas. A interdisciplinaridade não é sempre. O resultado foi ótimo: de um lado cresci na tão aclamada relação da mídia e da saúde (que é minha área de interesse), e de outro me apaixonei por Memória. Pena não tê-la encontrado antes.

Voltei ao Observatório de Saúde e Mídia logo depois do carnaval. Meu trabalho lá consiste em ler algumas edições de jornal por dia, geralmente de um mesmo jornal, e mapear como a saúde aparece no discurso da imprensa, separando todas as notícias com indícios dessa busca. Mas não se enganem com a aparente simplicidade da missão. Pois nem é fácil definir saúde, nem ela se revela óbvia a qualquer piscadela. Caço em silêncio, para não assustar o discurso.

Registrados os achados, vou-me embora quase sempre me sentindo tecnicamente depressiva. Ler jornal só faz bem pra saúde enquanto dado de pesquisa. A mente e a alma ficam péssimas.

Enquanto não começavam as aulas, dediquei meu tempo à tão ansiada qualificação. Escrevi a revisão bibliográfica e agora estou construindo em paralelo a introdução e o referencial teórico. A dura tarefa de aprender a ser pesquisadora se torna mais fácil com uma orientação presente, agendada e cumprida. Dói, cansa, mas me agiganta. Meus companheiros agora são Bourdieu, Verón, Traquina, Oliveira, Araújo, Milton Pinto, Sacramento... São difíceis eles, personalidade forte demais!

Nessa semana apresentei o blog aos novos alunos de mestrado e doutorado do PPGICS, a convite da professora Inesita. Foi engraçado porque pela primeira vez eu senti um medo que nunca senti aqui, nesta disciplina. Medo do que iam pensar de mim, do que exponho, do que dou, pela palavra, validade e importância. Só ali eu percebi que sou o contraponto. Que pelo blog, me expus mesmo, sem pecado e sem juízo. Não me arrependo, mas revejo a proposta de relação que quero ter com o mundo que acessa a internet. É difícil, porque eu gosto de compartilhar. Mas por que? Como? Para quem? Perguntas.

Deve ser por isso que hoje a escrita está rígida. Está assustada, coitada. Acuada num canto escondido de mim. Está como eu estou, na reserva. No meu outono íntimo.

Quando a gente menos esperar, floresço outra vez.

segunda-feira, 25 de março de 2013

30



A única coisa ruim de chegar aos 30 é a reta final do percurso. O último mês antes de fazer a curva. A gente cresce sabendo que essa hora vai chegar, faz piadas sobre isso, se imagina estando de mil maneiras diferentes quando pendurar no pescoço a idade e não percebe o quão imbecil está se tornando quando acredita que existe mesmo uma grande faixa de chegada onde se pode ler ‘parabéns, você virou adulto!’. Pra mim, honestamente, foi uma droga. Fiquei angustiada, sorumbática, esquisita, bipolar. Parecia que daquela minha casca velha ia sair uma bruxa. Enrugada, traiçoeira, de queixo comprido e com uma verruga na ponta do nariz. Borboleta, nunca.

Tudo bobagem.

Sou uma trintona com tê maiúsculo. Vivi todo o tempo que tive sem medo de errar a receita. Aliás, rasguei a receita. Não fiz planos longínquos, mas isso nunca me impediu de tentar meu rumo. Tento até hoje. Erro, acerto, deixo rastro. Me engano e me perdoo. Estou na vida, jogada no mundo. Ficando tão esperta quanto boba. Tão santa quanto doida. Tão histérica quanto sã. Tão Brasil quanto Ceará, África, Portugal. Tão eu quanto todos nós. Vocês, mistura do que sou feita. Matéria-prima: gente. Método: troca de energia. Validade: indeterminada.

Não sou mãe, mas sou madrinha. Não sou casada, mas sou comadre. Não sou concursada, mas sou estudante! Pra frente Brasil, pátria amada, mãe gentil! Nem cachorro tenho, mas o meu antúrio está cada dia mais lindo. E tudo o que não sou, ainda posso ser. Fui sendo de outras maneiras e deixando as cerejas para depois. Colherei todas, de vestido florido com a barra amarrada na canela, em belas manhãs de segunda, meu dia da sorte.

Doí tanto que aprendi a gritar. Sorri tanto que aprendi a chorar. Estive em mais lugares dentro de mim do que caberia em qualquer passaporte. E ainda assim, às vezes, me desconheço. Que seja. Não se pode desvendar-se por absoluto. Nem para si. O melhor é surpreender-se, vez ou outra estranhar-se, para não perder a habilidade de malear-se. Resignar-se. Despir-se de tudo para recomeçar de outro ponto, se preciso for.

Pois só agora ganhei óculos novos. Que olham em múltiplas direções: dentro e fora, direita e esquerda, ao alto e adiante. Debaixo do umbigo e acima do muro. E a busca pelo sentido começa a me responder. Estar viva para quê? Há alguma coisa que se possa fazer além de só ser?

Quando a gente faz a curva e percebe que não há faixa de chegada nenhuma, que só há o velho mundo com mil rotas de passagem... Aí sim, a vida começa de verdade.