segunda-feira, 29 de julho de 2013

Cidade maravilhosa

Quinze para as três da tarde de um domingo pós-feriado prolongado. Tomamos um táxi na rua de casa porque o ônibus não passou, e já estávamos bastante atrasadas, mesmo para os padrões cariocas, quando atrasar é normal. No caminho foi que soubemos pelo rádio do carro que logo mais a noite haveria jogo no maracanã: flamengo e botafogo. Um breve silêncio interrompido pela constatação da amiga que me acompanhava: então é isso mesmo... vamos subir o morro pela primeira vez num dia de jogo do flamengo. Sorrimos de imaginar as situações possíveis. Um medinho bem burguês... Mas quem não tem os seus?

Duas e meia da manhã do dia 16 de março, em 2002. O carro dos bombeiros vai subindo o morro devagar, escoltado pelo carro da polícia militar. Numa das curvas o encontro: traficantes armados, ao observarem aquela subida não avisada, levantam seus fuzis e se direcionam para um confronto, quando Tião desce do banco do passageiro do 190, com as mãos pra cima, gritando: calma, calma, foi a minha filha que nasceu! Enquanto isso, Eliete, que não conseguiu descer o morro antes da bolsa romper, já tinha dado a luz à Ellen, na sala da primeira casa que lhes abriu a porta, quando a hora chegou. E o pai teve que buscar lá embaixo os bombeiros, que não subiam sozinhos de jeito nenhum.

Quando saltamos do taxi, a realidade ali exposta já era bem outra. Tião nos esperava com um sorriso aberto na entrada da comunidade de Santa Marta, a primeira favela pacificada do Rio de Janeiro, e o que víamos naquele domingo ensolarado era um mar de casas coloridas, quase brotando do chão e ficando pequeninas, miudinhas, quanto mais alto ia se tornando o morro que ainda víamos de baixo. Uma visão realmente alegre, convidativa, e rápido me senti dentro de um comercial da coral, tipo ‘tudo de cor para você’. E minha primeira observação sobre o nosso anfitrião, além do seu admirável bom humor (aquele tipo de gente que ri com o estômago), foi o fato de ele ter cumprimentado dezenas de pessoas ao longo do passeio, e delas terem retribuído com a mesma simpatia com a qual eram abordadas. Ele estava realmente em casa, e nós começávamos a participar da ambiência dele, naturalmente.

É que o pré-requisito para a recepção já havia sido traçado desde 2009, 2010... quando comecei a conviver com Renato, um dos irmãos de Tião, que há mais de 20 anos mora no Ceará, com quem tive o grande prazer de trabalhar junto e de cobrar dele o meu cafezinho diário, normalmente por volta das duas da tarde, que vinha sempre acompanhado de uma história divertida, dos ‘tempos do Rio de janeiro’. Eu nem imaginava que moraria aqui um dia, mas foi o Carioca quem primeiro me deu um Rio de presente, através das suas narrativas. Foi dele que aprendi as primeiras noções de comunidade, e na cidade das histórias dele, tudo era também muito colorido. Então naquele domingo eu era apenas a amiga do Nato, portanto ‘gente da família’ e tudo certo, tudo bem.

Foi assim que entramos no bondinho (que mais parece um trem, já que funciona em trilho) e enquanto subíamos comecei as minhas perguntas habituais: se o morro estava mesmo tranquilo, se havia mudado muito ao longo do tempo, se Tião ainda tocava na bateria da São Clemente, se os filhos gostavam de viver lá... uma matraca, sem conseguir ficar calada. E Tião, com um prazer de brilhar o olho, me dizia que ‘sim, hoje está tudo muito diferente, muito melhor’, ‘presta atenção, eu sou é do sereno’, ‘meu filho mais velho dança tudo o que você imaginar’, ‘o do meio é o único estudioso e também dá aula de percussão’, e a mais nova já sabe que ‘negócio de namorado dormir em casa, só se for do lado dele’.

Quanto mais alto subíamos e mais bonita ficava a vista, mais Tião buscava no seu baú de memórias o morro do seu passado, da sua infância. Nos dizia que tudo o que agora víamos de cimento, era barraco de madeira. Que para construir era preciso subir com o material a pé, e que todo mundo ajudava no caminho. Mostrava nas paredes agora grafitadas com arte as marcas de bala, dos tantos fuzilamentos já realizados nos muros. Contou-nos da atuação da Associação dos Moradores, da ONG Atitude Social, e de uma forma de viver no morro que mudou muito ao longo do tempo. ‘A vida melhorou bastante, mas hoje está tudo maior, as pessoas se conhecem menos, os mais novos não respeitam os mais velhos e os mais velhos também não interferem mais tanto nas famílias. No meu tempo, quando um moleque se chegava perto duma mesa de bar, o avô dava logo um cascudo, e mandava sair de lá’. E eu, cá com meus botões, somava ao dele o meu lamento e pensava baixo: antes fosse só no morro, Tião... antes fosse.

Fomos até um dos mirantes da comunidade (sim, tem vários) e registramos, maravilhados, aquela Baía de Guanabara, observando que agora pequenos e frágeis nos pareciam os seus barcos, e não nós. Gostaria de soprar, e ver se os removia de lugar... Neste percurso estávamos acompanhados também de uma amiga dos tempos de escola de Tião, que há muito mora no Rio Grande do Sul e que naquele dia apresentava à filha o seu local de nascimento. E pude sentir a felicidade dela, de perceber tudo tão mais urbanizado, de comprovar um direito concreto de ir e vir, acompanhada de uma certa angústia por não conseguir identificar a casa de amigos antigos, nos becos agora tão estreitos.

Durante a descida, eu já havia parado de perguntar. Fui arrastada por uma sensação estranha e curiosa de prazer e de dor. Cada batente que eu transpunha, revelando uma possibilidade nova de entrada e saída de alguma rua (se é que se pode chamar aquilo de rua), me transportava para um outro lugar, fora e também dentro de mim: para uma venda com uma senhora muito, muito velha, na janela; para uma igreja evangélica; para um salão de beleza; para uma casa cheia de passistas produzidas com suas roupas de ginástica. Para um esgoto correndo ladeira abaixo, para muito lixo espalhado, ou exatamente para o contrário: um beco limpinho, enfeitado ainda com bandeirinhas de São João. A praça onde Michael Jackson desceu e que agora tem sua estátua, a aula de percussão lotada de turistas estrangeiros, e finalmente a casa de Tião, e de Eliete, com aquele sorrisão aberto.

Eu nunca, nunca mais, vou dizer que minha casa é pequena. Saber aproveitar espaços, na favela, não é luxo. É necessidade mesmo. A casa de Tião é uma das tantas outras que foi crescendo pro alto, laje após laje. Assim, a área do churrasquinho fica sobre os quartos, que fica sobre a sala e a cozinha, e ligando tudo isso, algumas escadas, para as quais é preciso desenvolver a ciência da verticalidade. Tanto que fiquei na dúvida se aceitava a cerveja, imaginando minha incompetência para descer aquilo ao final. Na dúvida, assistimos ao jogo do Fogão na sala, melhor para todos nós.

É claro que fiquei apaixonada. Não só pelo churrasco da Eliete e pelas histórias do nosso anfitrião, mas porque ali, no meio daquele aperto, estava materializada uma lógica que faz muito sentido para mim: de uma simplicidade que se completa no outro. Nada num nível intelectualizado. É na prática mesmo: é impossível fazer qualquer coisa no morro sem esbarrar na convivência com o próximo, e por isso ela tem que funcionar. Quando o vizinho de Tião quis subir a laje dele e perguntou se a família se incomodaria de perder a vista para o Cristo, ele assim respondeu: ‘se é para melhorar a vida da sua família, faça sua laje, porque o Cristo eu posso ver de todo lugar’. E no fim, está todo mundo no mesmo barco mesmo. Ou em canoinhas interligadas... se afundar uma, afundam todas.

Claro que um domingo é pouco para dizer que conheço o morro. Acho que não conseguiria afirmar isso nem que vivesse por lá alguns anos. Quem sabe uma vida toda, como Tião, que agora com seus 54 está curtindo a melhor fase do Santa Marta, mesmo consciente do quanto ainda pode e deve melhorar. Mas posso dizer seguramente que poucas experiências me impactaram tão positivamente quanto esta. Talvez porque eu tenha entendido que a minha vida está muito longe de ser o único modelo possível, mesmo na minha nada ousada ideia de progresso. Ou talvez porque eu estivesse com saudade de quem me abrisse as portas de casa e dissesse: entre e fique a vontade! O que é raro por aqui. Ou talvez apenas porque aquela família seja merecedora de todo o meu apreço e minha admiração: viver com uma dignidade que se conquista na raça, que não é dada de mão beijada, que não se pode sequer tentar comprar em bons colégios, é uma coisa que sempre vai me emocionar.

Fui tocada em definitivo por um modo de ser e viver que me pareceu muito mais real, visceral, integral, e por isso mesmo mais dotado de tato e paladar. Porque no Rio é preciso ter cuidado para não deixar que a visão, e todas as fotografias possíveis, sejam tudo o que existe. Porque é uma cidade linda mesmo, sem dúvida que abale. Mas faltava uma coisa que ligasse, na minha cabeça, tanto contraste. Que me dissesse que tantas cidades são, sim, uma cidade só, mesmo com formas tão distintas de existir. De pescar o peixe e fabricar o pão. Nada contra o asfalto, não me entendam mal... Mas foi o morro, e a vida que de lá pulsa, que me deu uma vontade sincera de dizer que o Rio de Janeiro começa a se parecer com o que eu entendo por uma cidade maravilhosa.


Seu Renato, Tião e Eliete, muito obrigada.