15 de maio de 2014. Dormi muito
mal na noite anterior. Um sono leve, fragmentado, repleto de pequenos sonhos
expressionistas. Clarisses deformadas sofriam em tribunais antigos. Acordei
tensa e mal humorada. Chequei a bolsa pela milésima vez antes de sair de casa:
pen drive, ok, dvd, ok, arquivo no dropbox, ok. Na dúvida, resolvo de última
hora levar meu próprio notebook. No ponto de ônibus, acompanhada do meu atual
namorido, espero o 498 ou o 497 que nunca chegam. Penso: o suco na bolsa vai
começar a descongelar e vai esquentar, além de molhar tudo. Resolvo pegar um
táxi. No caminho, o motorista relapso bate na traseira de um ônibus. Ainda que
de leve, demora um tempo a resolver. 15 minutos que pareceram uma perfeita
eternidade. Minha barriga doía. Imaginava Kátia me esperando para uma
pré-apresentação antes da sabatina oficial. Suava frio.
Minha defesa do mestrado aconteceu
depois de muito medo, de uma luta intensa entre a senhora da dissertação de
título grande, e a Piá assustada com o fim do ciclo, e com a necessidade de
expor de forma madura a pesquisadora que havia nascido nos dois anos e dois
meses que antecederam a data. Sofri por tudo: pelo ritual de apresentação, pela
sala ficando cada hora mais cheia, pelo tempo curto, pela cabeça doendo...
talvez de fome, de ausência de tudo que não consegui comer e que as infinitas
idas ao banheiro antes da apresentação terminaram por levar embora. No final,
ah o final, deu tudo mais do que certo. Talvez tenha sido exatamente o sofrimento
que me fez perceber que aquilo era só uma devolução de chaves. A travessia pela
sala por horas escura, por horas iluminada do aprendizado do mestrado eu já
havia superado, e a porta eu transpus quando entreguei as versões impressas do
trabalho.
O dia da defesa do mestrado, sorriso de alívio
8 de dezembro de 2014. Trabalhando
no portal de notícias da Fiocruz, retorno do almoço na cantina e visito o site
do Icict, sem muita esperança de que o resultado da seleção já tenha sido
divulgado. Coração vem na boca quando leio a notícia “Sai relação de aprovados
para o Doutorado 2015 do PPGICS”. Sem nomes, a lista revela a classificação
pelo número de inscrição. E eu estou lá, aluna do PPGICS mais uma vez! O fio da
memória me leva de volta ao final de 2011, quando também abancada em minha mesa
de trabalho no Cosems, li sozinha o resultado final de um processo que fiz em
segredo. Diferentemente de agora, quando os professores, corredores e trajetos
já me são de algum modo íntimos, naquele tempo eu não tinha noção do que me
esperava. Neste 2014, novamente em silêncio, checo diversas vezes antes de
anunciar aos colegas de sala. Sou eu mesma, não há mais dúvida, materializada
numa sequência impessoal de números. Muitos abraços chegaram com a novidade, e
minha mãe, do outro lado da linha telefônica, gritou muito mais do que eu.
Turma PPGICS 2012
Algum dia do mês de fevereiro de
2015. Os dias que seguiram após o resultado vieram recheados de fortes emoções
e toneladas de questões. Conseguiria permanecer no trabalho e cursar o
doutorado ao mesmo tempo? Ou, no oposto disso, daria conta de voltar a ser
somente bolsista? Não era só uma questão financeira, mas era também. Hoje eu
sei o quanto custa o Rio, em todos os sentidos. Vivo numa cidade cuja
especulação imobiliária duplicou o valor do quarto e sala em que
vivo desde sempre. Visitar a família tornou-se um evento mais raro a cada ano,
e sofri muito com isso. A cidade me deu o aterro do Flamengo aos domingos, e o
Jardim Botânico em todas as crises de mesquinharia. Mas eu vi de perto um
tiroteio, e cansei de tentar entender a dinâmica da Avenida Brasil. Não sou
mais a piá de antes. Soterrei em algum clássico túnel carioca a minha
ingenuidade de outrora, e ainda pelejo para construir novas formas de
desenvolver meus afetos, em códigos culturais tão distintos dos meus de origem.
Nuns dias, a perspectiva de
seguir dando asas à pesquisadora dentro de um programa de pesquisa que eu
gosto, com pessoas com as quais me identifico fortemente, me enchia de alegria
e orgulho. Noutros dias, o horizonte de mais quatro anos de Rio e de todas as
contradições que estar aqui representam pra mim, se transformavam em medo de
enfrentar outra vez essa jornada. Agora não é mais o desconhecido que me
assusta, mas justamente o que eu vi e vivi ao longo dos três anos completos
exatamente no aniversário de 450 anos da cidade. Talhou-se uma adulta, e meu
desafio hoje é não deixar que a Piá se torne muda.
17 de março de 2015. Meu
aniversário de 32 anos. Já estou vivendo os últimos dias como jornalista do
portal. Não poderei ficar. Tanto por uma política de capacitação de terceirizados
inexistente na Fundação quanto pelo meu próprio reconhecimento e aceitação de
que eu não conseguiria me dedicar ao doutorado como gostaria se continuasse
trabalhando, optei pela vida de estudante outra vez. E como bem disse uma amiga
querida: que bom que pude fazer isso, que tive o mérito dessa escolha. Comemorei
a data vindo para o primeiro dia de aula da disciplina Ciência, Meio Ambiente e Saúde: os desafios da divulgação científica na
atualidade. Hoje ela ocupa as minhas tardes de terça, e durante as manhãs
estou em Seminários I, vivendo a experiência
de me localizar aos poucos numa turma nova, que já tem os seus modos de ser, de
agir e de conviver, aos quais pertenço apenas em partes, total coadjuvante.
Equipe do Portal de Notícias da Fiocruz
Minha pesquisa, espero, será a
realização de outro sonho: o de ouvir os usuários do SUS. Compartilho da ideia
de que informação e comunicação são partes intrínsecas do processo de
construção de um itinerário terapêutico. Mas quais as informações que eles
dispõem e acessam quando precisam usar um serviço de saúde? O quanto há de suas
respectivas culturas influenciando na tomada de decisão? Como a memória social,
e coletiva, e as mediações que acontecem nos territórios dão vazão ao caminho
que eles desenvolvem, a despeito do itinerário oficial determinado pelo
Ministério da Saúde? Esses usuários são em algum momento consultados, ou suas
autonomias são respeitadas nesse processo? Quero estar com eles, e ouvir deles
as relações de poder implicadas na dinâmica de suas fragilidades.
Sei que tenho um longo caminho
pela frente. E sei que as dores e alegrias serão distintas das que vivi quando
saí de casa em 2012 para construir a minha vida carioca, a minha história “estrangeira”,
a minha nordestinidade preservada com samba no pé. Mas o mestrado me ensinou a
beleza e o valor da travessia. E é nela que desde aquele dezembro emprego,
outra vez, toda a minha energia.
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