Quinze para as três da tarde de um domingo
pós-feriado prolongado. Tomamos um táxi na rua de casa porque o ônibus não
passou, e já estávamos bastante atrasadas, mesmo para os padrões cariocas,
quando atrasar é normal. No caminho foi que soubemos pelo rádio do carro que
logo mais a noite haveria jogo no maracanã: flamengo e botafogo. Um breve
silêncio interrompido pela constatação da amiga que me acompanhava: então é
isso mesmo... vamos subir o morro pela primeira vez num dia de jogo do
flamengo. Sorrimos de imaginar as situações possíveis. Um medinho bem
burguês... Mas quem não tem os seus?
Duas e meia da manhã do dia 16 de
março, em 2002. O carro dos bombeiros vai subindo o morro devagar, escoltado
pelo carro da polícia militar. Numa das curvas o encontro: traficantes armados,
ao observarem aquela subida não avisada, levantam seus fuzis e se direcionam
para um confronto, quando Tião desce do banco do passageiro do 190, com as mãos
pra cima, gritando: calma, calma, foi a minha filha que nasceu! Enquanto isso,
Eliete, que não conseguiu descer o morro antes da bolsa romper, já tinha dado a
luz à Ellen, na sala da primeira casa que lhes abriu a porta, quando a hora
chegou. E o pai teve que buscar lá embaixo os bombeiros, que não subiam
sozinhos de jeito nenhum.
Quando saltamos do taxi, a
realidade ali exposta já era bem outra. Tião nos esperava com um sorriso aberto
na entrada da comunidade de Santa Marta, a primeira favela pacificada do Rio de
Janeiro, e o que víamos naquele domingo ensolarado era um mar de casas
coloridas, quase brotando do chão e ficando pequeninas, miudinhas, quanto mais
alto ia se tornando o morro que ainda víamos de baixo. Uma visão realmente
alegre, convidativa, e rápido me senti dentro de um comercial da coral, tipo ‘tudo
de cor para você’. E minha primeira observação sobre o nosso anfitrião, além do
seu admirável bom humor (aquele tipo de gente que ri com o estômago), foi o
fato de ele ter cumprimentado dezenas de pessoas ao longo do passeio, e delas
terem retribuído com a mesma simpatia com a qual eram abordadas. Ele estava
realmente em casa, e nós começávamos a participar da ambiência dele,
naturalmente.
É que o pré-requisito para a
recepção já havia sido traçado desde 2009, 2010... quando comecei a conviver
com Renato, um dos irmãos de Tião, que há mais de 20 anos mora no Ceará, com
quem tive o grande prazer de trabalhar junto e de cobrar dele o meu cafezinho
diário, normalmente por volta das duas da tarde, que vinha sempre acompanhado
de uma história divertida, dos ‘tempos do Rio de janeiro’. Eu nem imaginava que
moraria aqui um dia, mas foi o Carioca quem primeiro me deu um Rio de presente,
através das suas narrativas. Foi dele que aprendi as primeiras noções de
comunidade, e na cidade das histórias dele, tudo era também muito colorido.
Então naquele domingo eu era apenas a amiga do Nato, portanto ‘gente da família’
e tudo certo, tudo bem.
Foi assim que entramos no
bondinho (que mais parece um trem, já que funciona em trilho) e enquanto
subíamos comecei as minhas perguntas habituais: se o morro estava mesmo
tranquilo, se havia mudado muito ao longo do tempo, se Tião ainda tocava na
bateria da São Clemente, se os filhos gostavam de viver lá... uma matraca, sem
conseguir ficar calada. E Tião, com um prazer de brilhar o olho, me dizia que ‘sim,
hoje está tudo muito diferente, muito melhor’, ‘presta atenção, eu sou é do
sereno’, ‘meu filho mais velho dança tudo o que você imaginar’, ‘o do meio é o
único estudioso e também dá aula de percussão’, e a mais nova já sabe que ‘negócio
de namorado dormir em casa, só se for do lado dele’.
Quanto mais alto subíamos e mais
bonita ficava a vista, mais Tião buscava no seu baú de memórias o morro do seu
passado, da sua infância. Nos dizia que tudo o que agora víamos de cimento, era
barraco de madeira. Que para construir era preciso subir com o material a pé, e
que todo mundo ajudava no caminho. Mostrava nas paredes agora grafitadas com
arte as marcas de bala, dos tantos fuzilamentos já realizados nos muros.
Contou-nos da atuação da Associação dos Moradores, da ONG Atitude Social, e de
uma forma de viver no morro que mudou muito ao longo do tempo. ‘A vida melhorou
bastante, mas hoje está tudo maior, as pessoas se conhecem menos, os mais novos
não respeitam os mais velhos e os mais velhos também não interferem mais tanto
nas famílias. No meu tempo, quando um moleque se chegava perto duma mesa de
bar, o avô dava logo um cascudo, e mandava sair de lá’. E eu, cá com meus
botões, somava ao dele o meu lamento e pensava baixo: antes fosse só no morro,
Tião... antes fosse.
Fomos até um dos mirantes da
comunidade (sim, tem vários) e registramos, maravilhados, aquela Baía de
Guanabara, observando que agora pequenos e frágeis nos pareciam os seus barcos,
e não nós. Gostaria de soprar, e ver se os removia de lugar... Neste percurso
estávamos acompanhados também de uma amiga dos tempos de escola de Tião, que há
muito mora no Rio Grande do Sul e que naquele dia apresentava à filha o seu
local de nascimento. E pude sentir a felicidade dela, de perceber tudo tão mais
urbanizado, de comprovar um direito concreto de ir e vir, acompanhada de uma
certa angústia por não conseguir identificar a casa de amigos antigos, nos
becos agora tão estreitos.
Durante a descida, eu já havia
parado de perguntar. Fui arrastada por uma sensação estranha e curiosa de
prazer e de dor. Cada batente que eu transpunha, revelando uma possibilidade
nova de entrada e saída de alguma rua (se é que se pode chamar aquilo de rua),
me transportava para um outro lugar, fora e também dentro de mim: para uma
venda com uma senhora muito, muito velha, na janela; para uma igreja evangélica;
para um salão de beleza; para uma casa cheia de passistas produzidas com suas
roupas de ginástica. Para um esgoto correndo ladeira abaixo, para muito lixo
espalhado, ou exatamente para o contrário: um beco limpinho, enfeitado ainda
com bandeirinhas de São João. A praça onde Michael Jackson desceu e que agora
tem sua estátua, a aula de percussão lotada de turistas estrangeiros, e
finalmente a casa de Tião, e de Eliete, com aquele sorrisão aberto.
Eu nunca, nunca mais, vou dizer
que minha casa é pequena. Saber aproveitar espaços, na favela, não é luxo. É
necessidade mesmo. A casa de Tião é uma das tantas outras que foi crescendo pro
alto, laje após laje. Assim, a área do churrasquinho fica sobre os quartos, que
fica sobre a sala e a cozinha, e ligando tudo isso, algumas escadas, para as
quais é preciso desenvolver a ciência da verticalidade. Tanto que fiquei na
dúvida se aceitava a cerveja, imaginando minha incompetência para descer aquilo
ao final. Na dúvida, assistimos ao jogo do Fogão na sala, melhor para todos
nós.
É claro que fiquei apaixonada.
Não só pelo churrasco da Eliete e pelas histórias do nosso anfitrião, mas
porque ali, no meio daquele aperto, estava materializada uma lógica que faz
muito sentido para mim: de uma simplicidade que se completa no outro. Nada num
nível intelectualizado. É na prática mesmo: é impossível fazer qualquer coisa
no morro sem esbarrar na convivência com o próximo, e por isso ela tem que
funcionar. Quando o vizinho de Tião quis subir a laje dele e perguntou se a
família se incomodaria de perder a vista para o Cristo, ele assim respondeu: ‘se
é para melhorar a vida da sua família, faça sua laje, porque o Cristo eu posso
ver de todo lugar’. E no fim, está todo mundo no mesmo barco mesmo. Ou em
canoinhas interligadas... se afundar uma, afundam todas.
Claro que um domingo é pouco para
dizer que conheço o morro. Acho que não conseguiria afirmar isso nem que
vivesse por lá alguns anos. Quem sabe uma vida toda, como Tião, que agora com
seus 54 está curtindo a melhor fase do Santa Marta, mesmo consciente do quanto
ainda pode e deve melhorar. Mas posso dizer seguramente que poucas experiências
me impactaram tão positivamente quanto esta. Talvez porque eu tenha entendido
que a minha vida está muito longe de ser o único modelo possível, mesmo na
minha nada ousada ideia de progresso. Ou talvez porque eu estivesse com saudade
de quem me abrisse as portas de casa e dissesse: entre e fique a vontade! O que
é raro por aqui. Ou talvez apenas porque aquela família seja merecedora de todo
o meu apreço e minha admiração: viver com uma dignidade que se conquista na
raça, que não é dada de mão beijada, que não se pode sequer tentar comprar em
bons colégios, é uma coisa que sempre vai me emocionar.
Fui tocada em definitivo por um
modo de ser e viver que me pareceu muito mais real, visceral, integral, e por
isso mesmo mais dotado de tato e paladar. Porque no Rio é preciso ter cuidado
para não deixar que a visão, e todas as fotografias possíveis, sejam tudo o que
existe. Porque é uma cidade linda mesmo, sem dúvida que abale. Mas faltava uma
coisa que ligasse, na minha cabeça, tanto contraste. Que me dissesse que tantas
cidades são, sim, uma cidade só, mesmo com formas tão distintas de existir. De
pescar o peixe e fabricar o pão. Nada contra o asfalto, não me entendam mal...
Mas foi o morro, e a vida que de lá pulsa, que me deu uma vontade sincera de
dizer que o Rio de Janeiro começa a se parecer com o que eu entendo por uma cidade
maravilhosa.
Seu Renato, Tião e Eliete, muito obrigada.
Texto maravilhoso e gostoso de ler. Saudade disso tudo aí. Preciso conhecer a casa do Tião também. Nunca estive no Santa Marta. :)
ResponderExcluirOlá Heitor! Fico feliz que tenha gostado! Muito obrigada!
ExcluirEntrei no blog que o blogspot indica como seu, mas é de 2008, Diários de Macau. Achei curioso, especialmente porque gostaria de saber como terminou, e se terminou, sua narrativa sobre a Imperatriz Menina.=)
Tem coisas mais atualizadas? Abraço!